segunda-feira, 31 de maio de 2010

Sl 8, 4-10/ Soph. Ant. 332-375

Tive oportunidade de falar aqui anteriormente da chamada Ode ao Homem, o Canto Primeiro da Antígona de Sófocles. Ontem, ao ouvir o salmo que abaixo transcrevo, não pude deixar de notar os paralelismos entre os dois textos, que, contudo, quando cotejados, deixam sobretudo perceber a distância entre as duas mundividências, a grega e a hebraica.
Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos,
a Lua e as estrelas que Tu criaste:
que é o homem para te lembrares dele,
o filho do homem para com ele te preocupares?
Quase fizeste dele um ser divino;
de glória e de honra o coroaste.
Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos,
tudo submeteste a seus pés:
rebanhos e gado, sem excepção,
e até mesmo os animais bravios;
as aves do céu e os peixes do mar,
tudo o que percorre os caminhos do oceano.
Ó Senhor, nosso Deus,
como é admirável o teu nome em toda a terra!
A tradução é de José Augusto Ramos, para a Nova Bíblia dos Capuchinhos, da Difusora Bíblica, a edição standard. Nenhuma das conquistas do Homem sobre a Natureza a que o salmista alude deixa de encontrar eco no poema de Sófocles (tradução de MHRP):
E das aves as tribos descuidadas,
a raça das feras,
em côncavas redes
a fauna marinha, apanha-as e prende-as
o engenho do Homem.
Dos animais do monte, que no mato
habitam, com arte se apodera;
domina o cavalo
de longas crinas, o jugo lhe põe,
vence o touro indomável das alturas.
O Homem merece a Sófocles o epíteto de δεινότερον, «o mais assombroso», e o salmista dá-lhe um estatuto quase divino. A palavra hebraica vertida como «ser divino» é mesmo «deus». O arrojo do verso nunca foi, porém, totalmente aceite, parece: na Septuaginta, «ser divino» (já por si uma tradução que mitiga a força do original, mesmo se tem o cuidado de o registar em nota) surge traduzido como «anjo» e é assim que Paulo, em Heb 2, 6-8, cita o texto. Apesar de São Jerónimo se ter mantido fiel ao hebraico na Vulgata, a sua lição nem sempre foi seguida: veja-se a King James Bible ou, entre nós, a tradução de João Ferreira d'Almeida (a editada pela Assírio em oito volumes, com ilustrações de Ilda David').

E, todavia, insistimos, mau grado todo este louvor ao Homem, os textos são fundamentalmente diferentes, e não é difícil ver porquê. Se Sófocles sublinha como foi o Homem, por si próprio (lembremo-nos daquele ἐδιδάξατο), que conseguiu dominar a Natureza, o salmista tem o cuidado de deixar claro que se o ser humano é senhor da criação é-o por graça de Deus, que «tudo submet[eu] a seus pés». Achar que o Homem, pelo seu «engenho» (para usar a palavra de Sófocles), poderia chegar sozinho à domesticação e controlo do mundo animal seria uma espécie de pelagianismo. O Homem pode o que Deus lhe concede. Não deixa, por isso, de ser curioso notar que a cidade, que ocupa um lugar charneiro na Ode de Sófocles, está pura e simplesmente ausente desta salmo. Efectivamente, a cidade, na medida em que é uma criação do Homem apenas, e não de Deus, no princípio dos tempos, poderia levantar um problema teológico, ao ser louvada: o seu elogio seria sempre mais um canto ao Homem, seu criador, do que de Deus, como o é o salmo, conhecido, aliás, como 'Hino ao Criador do Homem'. A cidade, aliás, tem muitas vezes uma conotação negativa no mundo hebraico, enquanto espaço da perversão (é, não o esqueçamos, uma criação de Caim, Gen 4,17). Há uma certa desconfiança pela sedentarização, própria de um povo em marcha, como o judeu, oriundo do deserto. Não consigo deixar de suspeitar que o antropocentrismo grego tem muito que ver com o seu πόλις-centrismo e que a ausência desta última dimensão entre os hebreus pode, por sua vez, ter alguma relação (não necessariamente de causalidade) com o seu teocentrismo. O louvor ao Homem, no salmo, nunca atinge, pois, a plenitude que a autonomia grega, pelo contrário, lhe permite. Não há nenhuma contradição, nem talvez coincidência, no facto de o homem que afirmou ser o Humano a medida de todas as coisas ter sido o mesmo que declarou nada podermos saber dos deuses.

Pro Astrologia

É pois em vão que se recorre à celebre teoria da roda do oleiro que Nigídio, embaraçado com esta questão [porque é que os gémeos têm destinos tão diferentes, se nascem sob a influência dos mesmos astros], deu em resposta, diz-se — e daí ter sido alcunhado de Fígulo (Figulus = oleiro). Com quanta força pôde, imprimiu grande velocidade à roda do oleiro. Enquanto ela girava, marcou-a duas vezes com tinta preta, com a maior rapidez, como se o fizesse no mesmo sítio. Depois, parada que ficou a roda, encontraram-se na borda umas marcas bastante distanciadas. É assim, diz ele, que acontece na rapidíssima rotação do céu. Embora os gémeos nasçam um depois do outro tão rapidamente como a marcação dos sinais da roda, isso constituirá no céu uma grande distância. Daí provêm, diz ele, todas as dissemelhanças verificadas nos comportamentos e nos sucessos dos gémeos.

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro V, Cap. III
Gulbenkian, Lisboa: 1991. (trad.: J. Dias Pereira)

[Frustra itaque adfertur nobile illud commentum de figuli rota, quod respondisse ferunt Nigidium hac quaestione turbatum, unde et Figulus appellatus est. Dum enim rotam figuli ui quanta potuit intorsisset, currente illa bis numero de atramento tamquam uno eius loco summa celeritate percussit; deinde inuenta sunt signa, quae fixerat, desistente motu, non paruo interuallo in rotae illius extremitate distantia. "Sic, inquit, in tanta rapacitate caeli, etiamsi alter post alterum tanta celeritate nascatur, quanta rotam bis ipse percussi, in caeli spatio plurimum est: hinc sunt, inquit, quaecumque dissimillima perhibentur in moribus casibusque geminorum."]

imagem: carta astrológica de Ricardo Reis, por Fernando Pessoa

Como sempre, Romanos e Cartagineses

O juiz e o guarda civil
já pelos olivais chegam.
Sangue resvalado geme
muda canção de serpente.
Senhores guardas civis:
tudo aqui foi como sempre.
Mataram quatro romanos
e cinco cartagineses.

Federico García Lorca, in «Rixa», Romanceiro Cigano, Obra Poética, José Bento (trad.), Relógio d'Água, 2007.

domingo, 30 de maio de 2010

A questão do eBook*



(Quando o Simão me mostrou este vídeo, nem queria acreditar: algumas destas coisas já me tinham ocorrido. Reparem no estilo do moço a imitar o Steve Jobs.)

*Na Antiguidade Clássica não existiam livros tal como os conhecemos hoje, existiam os volumina, muito menos práticos e mais difíceis de manusear, pois tinham a forma de rolos que era preciso enrolar e desenrolar - se se queria em algum ponto da leitura voltar atrás, era uma complicação. Por outro lado, as palavras estavam todas coladas umas às outras e não houve, durante muito tempo, pontuação.
Os códices (já bastante parecidos com os livros e feitos em pergaminho) são uma invenção posterior (ou da Antiguidade Tardia ou mesmo já da Idade-Média - não sei dizer ao certo) e, porque mais práticos e resistentes, mais fáceis de consultar, constituem uma verdadeira inovação. Os códices eram uma espécie de primo-gémeo do livro: muito parecidos com ele, exceptuando alguns detalhes. A parte mais engraçada é que os mais belos códices que possuímos foram feitos na altura em que surgiu a imprensa e a produção do códice se ia tornar obsoleta.
Nem na Antiguidade Clássica nem na Idade Média temos qualquer atestação de que tenham existido eBooks. Já existia, contudo, pirataria (e nisto o eBook não é original): Cícero e Santo Isidoro de Sevilha são dois autores que se queixam de cópias falsas e não autorizadas das suas obras estarem em circulação (no caso de Santo Isidoro, a obra pirateada tratava-se das Ethymologiae, no caso de Cícero não me recordo). Eis uma cópia das Ethymologiae que se encontra no mosteiro de Saint Gall.

sábado, 29 de maio de 2010

Corto Maltese #4, Ou…

…more postcards from Greece.

imagem: Corto Maltese per catalogo Agenzia Viaggi Unitalia,
de Hugo Pratt (1993)
in Hugo Pratt, Périples Secrets
Casterman, Tournai: 2009.

A destruição diária de Pompeia



















Livros e Cigarros, uma curiosidade*














Numa altura em que toda a gente aponta como nova forma do livro o e-book, a TankBooks resolveu converter livros em maços de cigarros. Depois de se abrir o maço, o livro sai de lá em formato de bolso. Se comprarmos um conjunto de maços, este inclui obras de Conrad, Hemingway, Kipling, Tolstói e Kafka. O slogan da TankBooks para esta sua colecção é: "tales to take your breath away". E a parte engraçada é que houve máquinas de venda de tabaco que foram reabastecidas com livros.

*Este post não tem claramente nada que ver com a Antiguidade Clássica, exceptuando talvez no facto em que serve para dizer que muito têm caminhado os livros desde o rolo de papiro.
Não temos qualquer atestação na época greco-romana da relação entre livros e cigarros (nem o tabaco nem nada que se lhe parecesse, tanto quanto sei, existia) que se tornou famosa entre os leitores sobretudo no séc. XX. Orwell, por exemplo, escreveu um ensaio sobre o assunto, não sei porque é que não consta desta colecção da TankBooks.
Esta editora, que alia um design arrojado à produção dos seus livros, poderia agora elaborar uma colecção de traduções de obras da Antiguidade Clássica feitas classicistas que fossem notoriamente fumadores inveterados. Só para validar o meu post.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Exposição: Jornada de Cultura Neo-helénica


















































































Esta foi a exposição que teve lugar na FLUL no âmbito da Jornada de Cultura Neo-helénica . Os materiais que se pode ver nas fotografias pertencem às embaixadas de Chipre e Grécia, à Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Hélio Silva, um dos investigadores responsáveis pela organização da Jornada.

Corto Maltese #3


imagem: Corto Maltese, de Hugo Pratt (1988/89)

in Hugo Pratt, Périples Secrets
Casterman, Tournai: 2009.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Quem Adivinhar Do Que É Que Herr H. Está A Falar Ganha Um Café Pago

Now, because, on the one hand, the ethical order essentially consists in this immediate firmness of decision, and for that reason there is for consciousness essentially only one law, while, on the other hand, the ethical powers are real and effective in the self of consciousness, these powers acquire the significance of excluding and opposing one another: in self-consciousness they exist explicitly, whereas in the ethical order they are only implicit. The ethical consciousness, because it is decisively for one of the two powers, is essentially character; it does not accept that both have the same essential nature. For this reason, the opposition between them appears as an unfortunate collision of duty merely with a reality which possesses no rights of its own. The ethical consciousness is, qua self-consciousness, in this opposition and as such it at once proceeds to force into subjection to the law which it accepts, the reality which is opposed to it, or else to outwit it. Since it sees right only on one side and wrong on the other, that consciousness which belongs to the divine law sees on the other side only the violence of human caprice, while that which holds to human law sees in the other only the self-will and the disobedience of the individual who insists on being his own authority. For the commands of government have a universal, public meaning open to the light of day; the will of the other law, however, is locked up in the darkness of the nether regions, and in its outer existence manifests as the will of an isolated individual which, as contradicting the first, is a wanton outrage.

Hegel, Phenomenology of the Spirit, §466
OUP, Oxford: 1977. (trad.: A. V. Miller)

Corto Maltese #2


imagem: Etna Cyclopes, de Hugo Pratt (1988/89)

in Hugo Pratt, Périples Secrets
Casterman, Tournai: 2009.
Dizer duas coisas profundamente justas.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Contra a Navalha de Occam

Mas como é que num só capítulo deste livro podem ser mencionados os nomes de todos os deuses e de todas as deusas que dificilmente poderão caber em grossos volumes que tratam dos ofícios de cada deus para cada tarfea? Acharam que nem sequer deviam confiar a um só deus os trabalhos do campo, mas entregaram os plainos à deusa Rusina (rus = campo), os cumes (juga) dos montes a Jugatino, as encostas (collis) à deusa Colatina, os vales a Valónia. Nem mesmo puderam reservar só para Segetia as ceifas (segetes) — mas puseram a deusa Seia a presidir às sementes, enquanto estão debaixo da terra; a deusa Segetia, quando já estão acima da terra; a deusa Tutilina, à conservação do grão colhido e recolhido para se conservar em segurança (tuta). A quem é que não pareceria suficiente aquela Segetia a todo o desenvolvimento da messe desde que nasce até que a espiga amadureça? Tal não bastou porém a homens amantes de uma multidão de deuses [...]. Puseram por isso Prosérpina a presidir à germinação do trigo, o deus Nóduto aos gomos e nós (nodus) dos caules, a deusa Volatina aos involtório das folhas; a deusa Patelana à abertura dos folículos para que a espiga passe; a deusa Hostilina, quando as espigas vão igualando suas barbas, pois os antigos para igualar usavam o verbo hostire; à deusa Flora a floração do trigo; o deus Lacturno quando está leitoso; a deusa Matuta à maturação; a deusa Runcina quando se arrancam (runcare), isto é, quando o levam da terra. E não enumero a todos porque me aborrece o que a eles não causa vergonha.

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro IV, Cap. VIII
Gulbenkian, Lisboa: 1991. (trad.: J. Dias Pereira)

[Quando autem possunt uno loco libri huius commemorari omnia nomina deorum et dearum, quae illi grandibus uoluminibus uix comprehendere potuerunt singulis rebus propria dispertientes officia numinum? Nec agrorum munus uni alicui deo committendum arbitrati sunt, sed rura deae Rusinae, iuga montium deo Iugatino; collibus deae Collatinam, uallibus Valloniam praefecerunt. Nec saltem potuerunt unam Segetiam talem inuenire, cui semel segetes commendarent, sed sata frumenta, quamdiu sub terra essent, praepositam uoluerunt habere deam Seiam; cum uero iam essent super terram et segetem facerent, deam Segetiam; frumentis uero collectis atque reconditis, ut tuto seruarentur, deam Tutilinam praeposuerunt. cui non sufficere uideretur illa Segetia, quamdiu seges ab initiis herbidis usque ad aristas aridas perueniret? Non tamen satis fuit hominibus deorum multitudinem amantibus [...]. Praefecerunt ergo Proserpinam frumentis germinantibus, geniculis nodisque culmorum deum Nodutum, inuolunmentis folliculorum deam Volutinam; cum folliculi patescunt, ut spica exeat, deam Patelanam, cum segetes nouis aristis aequantur, quia ueteres aequare hostire dixerunt, deam Hostilinam; florentibus frumentis deam Floram, lactescentibus deum Lacturnum, maturescentibus deam Matutam; cum runcantur, id est a terra auferuntur, deam Runcinam. Nec omnia commemoro, quia me piget quod illos non pudet.]

Yorgos Zampetas (encontrou-o o Gabriel)

Corto Maltese #1

imagem: Olympe, de Hugo Pratt (1988)
in Hugo Pratt, Périples Secrets
Casterman, Tournai: 2009.

Compensa

Poucos nos lêem
Poucos conhecem a nossa língua
Permanecemos sem justiça e sem aplauso
Neste canto distante
Mas compensa escrevermos em Grego.

Kostas Montis, obra não identificada.
(trad.: Fotini Hadjittofi)

Um poeta que conheci na Jornada Neo-Helénica, hoje, na FLUL. Tenho pena por o público ter sido pequeno, mas o evento é de louvar, procurando dar a conhecer um território poético tão ignorado entre nós (ao ponto de a fraca recepção dos textos editados em Portugal desanimar os tradutores, que sentem — erradamente — o seu trabalho como vão). Espero francamente que a coisa se possa repetir para o ano (e será Kazantzakis convidado então?), tanto mais que estava tudo bastante bem organizado — faltaram os livros dos poetas para venda, mas já soube que não foi por descuido, mas por motivos de força maior, alheios à organização, a que não posso deixar de dar parabéns, pela coragem e cuidado na preparação da coisa, mal-grado todos os reveses. Sugestão ousada: para o ano, passar um Angelopoulos.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

"Suddenly, Last Summer" de Joseph L. Mankiewicz, 1959


Suddenly Last Summer é As Bacantes de Tenessee Williams com Joseph L. Mankiewicz como realizador. Esta simplificação é em muitos aspectos redutora mas não deixa de revelar um pouco da essência deste filme, o segundo em que Elizabeth Taylor contracenou com Montgomery Clift (o primeiro foi A Place in the Sun, uma década antes). O filme podia limitar-se a viver da qualidade do texto de Tenessee Williams, mas, contando com actores como Katharine Hepburn, Elizabeth Taylor e Montgomery Clift e sendo o realizador quem é, isso não era possível. Trata-se, portanto, de outro caso de uma excelente adaptação de um tema clássico para cinema.

O Cego Que Vê


Édipo é cego porque alguém escreveu em cima dos seus olhos. A cegueira é uma escrita em sítio errado.

Gonçalo M. Tavares, Biblioteca s.v. Heiner Muller
Campo de Letras, Porto: 2004.

ESTRANGEIRO
E que ajuda pode vir de um homem privado de vista?
ÉDIPO
Aquilo que eu disser terá visão infalível.

Sófocles, Édipo em Colono (73-74)
FESTEA, Coimbra: 2001. (trad.: Maria do Céu Fialho)

[Ξένος
καὶ τίς πρὸς ἀνδρὸς μὴ βλέποντος ἄρκεσις;
Οἰδίπους
ὅσ᾽ ἂν λέγωμεν πάνθ᾽ ὁρῶντα λέξομεν.]


imagem: Édipo em Colono, de Jean-Antoine-Theodore Giroust (1788)
@ Museu de Arte de Dallas, Texas, EUA.

Portugal, 2010 A.D.

Afastada a justiça, que são, na verdade, os reinos senão grandes quadrilhas de ladrões? Que é que são, na verdade, as quadrilhas de ladrões senão pequenos reinos? Estas são bandos de gente que se submete ao comando de um chefe, que se vincula por um pacto social e reparte a presa segundo a lei por ela aceite. Se este mal for engrossando pela afluência de numerosos homens perdidos, a ponto de ocuparem territórios, constituírem sedes, ocuparem cidades e subjugarem povos arroga-se então abertamente o título de reino, título que lhe confere aos olhos de todos, não a renúncia à cupidez, mas a garantia de impunidade. Foi o que com finura e verdade respondeu a Alexandre Magno certo pirata que tinha sido aprisionado. De facto, quando o rei perguntou ao homem que lhe parecia isso de infestar os mares, respondeu ele com franca audácia: «O mesmo que a ti parece isso de infestar todo o mundo; mas a mim, porque o faço com um pequeno navio, chamam-me ladrão; e a ti, porque o fazes com uma grande armada, chamam-te imperador».

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro IV, Cap. IV
Gulbenkian, Lisboa: 1991. (trad.: J. Dias Pereira)

[Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? quia et latrocinia quid sunt nisi parua regna? Manus et ipsa hominum est, imperio principis regitur, pacto societatis astringitur, placiti lege praeda diuiditur. Hoc malum si in tantum perditorum hominum accessibus crescit, ut et loca teneat sedes constituat, ciuitates occupet populos subiuget, euidentius regni nomen adsumit, quod ei iam in manifesto confert non dempta cupiditas, sed addita inpunitas. Eleganter enim et ueraciter Alexandro illi Magno quidam comprehensus pirata respondit. Nam cum idem rex hominem interrogaret, quid ei uideretur, ut mare haberet infestum, ille libera contumacia: Quod tibi, inquit, ut orbem terrarum; sed quia ego exiguo nauigio facio, latro uocor; quia tu magna classe, imperator.]

domingo, 23 de maio de 2010

Espionagem

FM: Entre tantos outros projectos de estudo que a ocuparam depois, qual é que destaca?
MHRP: A edição crítica da Pausaniae Graeciae Descriptio, de Pausânias, que fiz para a Biblioteca Teubneriana, a convite da Academia das Ciências de Berlim. Os manuscritos estavam espalhados por toda a Europa. Como, na altura, a saúde da minha mãe não me permitia sair do país, fizeram-me chegar por correio os microfilmes de todos os manuscritos. Ao todo, 26 microfilmes! Até aconteceu uma coisa muito engraçada. Era o tempo da Guerra Fria. Começaram a mandar-me manuscritos de Moscovo e eu fui chamada à Alfândega do Porto. O que era aquilo que eu estava a receber, ainda mais numa língua que ninguém percebia? Fui lá, expliquei o que se passava e apresentei as cartas da Academia das Ciências de Berlim. Disse-lhes: «Estão escritas em alemão. Se quiserem, eu traduzo». De facto, aquilo parecia uma coisa de espionagem. [Risos]
FM: Qualquer dia, o estudo do Grego e do Latim é quase como isso... Espionagem.
MHRP: Até certo ponto, sim. Mas espero que não.

Maria Helena Rocha Pereira, entrevistada por Filipa Melo
in LER 91 (Maio 2010, mas só agora me chegou às mãos).

Teatro antiguo

Cuando, hacia el mediodía, se encontró en medio del teatro antiguo,
un joven griego, él, confiado, pero hermoso como aquéllos,
lanzó un grito (non de admiración, la admiración
no la sentía en absoluto; y de haberla sentido,
sin duda no la hubiera manifestado), un grito sin más,
quizá por la fuerza indomable de su juventud
o para probar la acústica del lugar. Enfrente,
sobre las montañas cortadas a pico, contestó el eco;
- el eco griego que no imita, ni repite;
sino que simplemente prolonga, a incalculable altura,
el perenne alarido del ditirambo -.

Yannis Ritsos, Paréntesis/Testimonios I, Icaria Poesía, Román Bermejo (trad.), 2005

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Greek Architecture

Nor magnitude, not lavishness,
But Form - the Site;
Not innovating wilfulness,
But reverence for the Archetype.

Herman Melville, Poemas, Assírio & Alvim, 2009

quinta-feira, 20 de maio de 2010

'A Fonte Grega', de Simone Weil [Crítica]


Simone Weil, A Fonte Grega.
Cotovia, Lisboa: 2006. (trad.: Filipe Jarro)

Mais do que uma colecção de ensaios sobre o pensamento filosófico-religioso grego ou que uma leitura deste à luz da mística cristã, A Fonte Grega é uma exposição do «weilianismo», acima de tudo. O livro encontra-se divido em duas partes: a primeira contém ensaios acabados, a segunda reúne textos dos seus cadernos, não preparados para publicação e que, por vezes, se resumem a um conjunto de notas. Na primeira metade encontramos, logo a abrir, o famoso ensaio de Weil sobre a Ilíada. Porém, insisto, como toda a obra, trata-se sobretudo de um espaço para a autora expor parte da sua filosofia («força» é um conceito de que Weil se apropria), o que, contudo, em nada prejudica a qualidade do texto, que não desmerece a sua reputação. Será a altura propícia, aliás, para que eu confesse que sou um curioso de Weil, que descobri no final do ano passado, com o Espera de Deus, publicado pela Assírio & Alvim, primeiro volume da série 'Teofanias'.

Notas práticas, então (e repetimo-nos, porque é bom deixar isto claro): não ler este livro se se quer um conjunto de ensaios bonitos sobre cultura grega (a própria Cotovia tem outros livros melhores se é isso que se procura, como os ensaios de Frederico Lourenço ou outros volumes sobre Píndaro, Aristófanes e Eurípides). Também não ler na esperança de encontrar aquilo que, muito possivelmente, a maioria das pessoas, desagradadas, acusa o livro de ser: uma interpretação cristã da filosofia (e literatura) grega, dos pré-socráticos a Platão. Weil é uma mística, é certo, mas o seu cristianismo é muito peculiar (ergo, muito interessante), longe da ortodoxia. O que mais admiro nela é a forma como, no seu pensamento, o cristianismo não surge como uma ruptura com a tradição grega anterior, mas sim como o seu desenvolvimento natural, mas iluminado pela graça (outro conceito fundamental em Weil). Lembremos que Steiner, no seu opúsculo A Ideia de Europa, retomando um confronto que já Tertuliano expusera, considera a Europa como o produto do esforço tenso para conciliar Atenas e Jerusalém. Weil, porém, aproxima as duas cidades, deixando o leitor, por vezes, estupefacto com as suas ousadas leituras dos textos gregos, que, parecendo descabidas, manifestam, afinal, uma estonteante propriedade, quando arriscamos abordar o material a essa luz (veja-se o caso da sua interpretação do diálogo entre Electra e Orestes como uma conversa entre Cristo e a alma ou do mito de Eros no Banquete como uma narrativa da encarnação). Pouco importa que Weil faça violência a alguns textos de Platão, ou veja alusões ao baptismo em fragmentos de Heraclito: analise-se friamente o produto final, e não podemos senão ficar com as mãos e o coração quente (e também o fogo, e de forma especial o raio, o fogo que desce do ceú, é uma metáfora importante em Weil).

Esta edição da Cotovia peca, contudo, por apresentar o texto enxuto. Sendo de Clássicas e tendo já tido um primeiro contacto com o pensamento de Weil, como disse antes, não consegui, ainda assim, seguir sempre o seu raciocínio pelos meandros das suas notas. A segunda parte, em particular, é, de facto, difícil, porque muito telegráfica, a tempos, feita de apontamentos rápidos, pensamentos elididos e remissões não totalmente explicadas. Imagino, pois, que quem conheça pior os textos gregos sobre os quais ela se debruça e mesmo quem, conhecendo-os, nada saiba da sua filosofia, tenha alguma dificuldade, se não em compreender a obra, pelo menos em lhe colher toda a profundidade. Eu próprio, estou ciente, terei de regressar a este livro, depois de ler, pelo menos, A Gravidade e a Graça e o L' Enracinement, e, já agora, também depois de finalmente ler A República, do Platão (shame on me). Em suma, e como já disse: um livro um pouco enganador para o consumidor comum, quer ele queira simplesmente pensar a Grécia, quer ele queira conhecer Weil. Peguem nisto os já interessados. Os outros, fotocopiem o ensaio da Ilíada e aventurem-se, para uma amostra do resto, no primeiro e longo texto do começo da segunda metade, sobre Platão como místico cristão (também vale muito a pena, e é de facto o melhor espelho da tarefa que Weil se propõe). Fica a sugestão: leiam Simone Weil. Outra coisa qualquer, mas leiam-na.

Cursos de Verão

O Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa colocou à disposição dos alunos uma série de cursos para o «terceiro semestre» (a designação faz-me alguma espécie). Existirão cursos livres em que não há obtenção de créditos pela sua frequência e esta é gratuita, bem como cursos com taxas simbólicas caso os alunos desejem adquirir créditos. Mais informações aqui. (Página em actualização.)

Ulisses e a Memória

Qualquer tentativa de compreender, na medida das nossas possibilidade, a natureza da representação e da memória, do facto e da ficção, deve começar no tribunal dos Feaces, no livro VIII da Odisseia. Demódoco, o aedo cego (a vista tornou-se visão) canta para os senhores reunidos e para o seu desconhecido hóspede. Canta as batalhas antes de Tróia, canta Ulisses. Ao ouvir-se cantado, o viajante sucumbe ao pranto. Não apenas, creio, devido ao manifesto pathos da recordação, não apenas porque os sombrios destinos dos seus antigos companheiros de armas lhe são relembrados, mas, de modo mais devastador, porque o recital do aedo obriga Ulisses a confrontar a «dissolução», a disseminação do seu eu vivente. Ele já passou à insubstancial eternidade da ficção. Foi esvaziado numa lenda. Não há poética depois de Homero, não há estudo filosófico sobre o estatuto do imaginário relativamente ao empírico, que seja mais penetrante. Encontram-se, na literatura e nas artes, outros actos priviligeados de reflexividade interior, tais com os fragmentos do Fígaro tocados em casa de D. Juan na sua última ceia, ou com o regresso do narrador a Veneza na obra de Proust. Nenhum deles é mais rico nem mais complexo do que Ulisses ouvindo Demódoco.

George Steiner, Errata: Revisões de uma Vida.
Lisboa, Relógio d'Água: 2009. (trad.: Margarida Vale de Gato)

imagem: ilustração da cena por Flaxman para a tradução
de William Cullen Bryant (Riverside Press, 1905).

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Angelos Sikelianos*

Of particular importance for Sikelianos was the role of poetry and of the poet in the ancient tradition that influenced him most. It was something of the same role that he himself aspired to fill in modern Greece: the poet standing in the center of his world as inspired profet and seer, teacher and mystagogue. Sikelianos considered Pindar and Aeschylus to be two poets of ancient Greece who best fulffiled this definition of the poet's role. And they fulfilled it through their use of myth, myth understood not as rhetorical or metaphorical device but as a spontaneous creation of the human soul directed toward the revelation of hidden spiritual life.

Edmund Keeley e Philip Sherrard em: Angelos Sikelianos, Selected Poems, Edmund Keeley e Philip Sherrard (trad.), Denise Harvey, 1996.

Angelos Sikelianos foi, para mim, o melhor poeta da Grécia entre a morte de Kavafis e o nascimento de Seferis. Conta-se entre aquele tipo de poetas que parecem apenas escrever poemas de uma beleza delicada, mas, quando damos por nós, percebemos que essa beleza atravessa, é por vezes sombria, talvez nunca amarga, e que, sobretudo, toca o coração da vida. Há uma verdade qualquer, ancestral, intacta, que é continuamente buscada nos textos de Sikelianos. Podem ler-se dois poemas dele aqui e aqui em tradução inglesa.

As Lágrimas da Estátua de Apolo Cumano

Não se sabe por que outro motivo esse Apolo de Cumas tivesse chorado durante quatro dias quando decorria a guerra contra os Aqueus e o rei Aristonico. Aterrados com este prodígio os arúspices julgaram que a sua imagem devia ser lançada ao mar. Mas os velhos cumanos opuseram-se e contaram que um prodígio semelhante ocorrera com a mesma imagem quando da guerra contra Antíoco e Perseu e testemunharam que, por essa guerra ter chegado ao fim com felicidade para os Romanos, um senato-consulto ordenou que se mandassem presentes ao mesmo Apolo. Chamaram-se então outros arúspices tidos por mais hábeis. Estes responderam que as lágrimas da imagem de Apolo eram favoráveis aos Romanos, visto Cumas ser uma colónia grega, e que, chorando, Apolo anunciava o luto e a derrota nas terras donde o tinham feito vir, isto é, da própria Grécia. Em breve foi anunciado que o rei Aristonico tinha sido vencido e aprisionado. É evidente que Apolo não queria esta derrota, dela se doía e até o mostrava com as lágrimas da sua imagem de pedra.

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro III, Cap. XI
Gulbenkian, Lisboa: 1991. (trad.: J. Dias Pereira)

[Neque enim aliunde Apollo ille Cumanus, cum aduersus Achiuos regemque Aristonicum bellaretur, quadriduo fleuisse nuntiatus est; quo prodigio haruspices territi cum id simulacrum in mare putauissent esse proiciendum, Cumani senes intercesserunt atque rettulerunt tale prodigium et Antiochi et Persis bello in eodem apparuisse figmento, et quia Romanis feliciter prouenisset, ex senatus consulto eidem Apollini suo dona missa esse testati sunt. Tunc uelut peritiores acciti haruspices responderunt simulacri Apollinis fletum ideo prosperum esse Romanis, quoniam Cumana colonia Graeca esset, suisque terris, unde accitus esset, id est ipsi Graeciae, luctum et cladem Apollinem significasse plorantem. Deinde mox regem Aristnicum uictum et captum esse nuntiatum est, quem uinci utique Apollo nolebat et dolebat et hoc sui lapidis etiam lacrimis indicabat.]

imagem: pormenor da estátua de Apolo, frente ao
templo do deus, em Pompeia (foto retirada daqui).

terça-feira, 18 de maio de 2010

Colóquio: A Guerra na Antiguidade V

Dando sequência às quatro edições anteriores (realizadas em 2005, 2006, 2008 e 2009), o Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa organiza no corrente ano o Colóquio A Guerra na Antiguidade V. O Colóquio, que se tornou já uma referência no panorama historiográfico nacional, ao propor novos horizontes teóricos, novos problemas metodológicos e novas linhas reflexivas para a análise e compreensão do fenómeno militar no Mundo Antigo, visa uma vez mais o estudo da guerra numa larga diacronia, que parte das civilizações pré-clássicas (Assíria, Egipto e Israel) até chegar ao mundo clássico (Grécia e Roma), sem esquecer os seus inimigos, a Ocidente e a Oriente.

O Colóquio terá lugar no Anfiteatro III da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no próximo dia 1 de Junho; a entrada é livre, destinando-se a inscrição, no valor de 5 EUR, à obtenção do certificado de presença. Para qualquer informação, queiram por favor contactar o secretariado do Colóquio (Drs. André Oliveira Leitão, Inês Araújo e Tiago Pinto), através dos emails centro.historia@fl.ul.pt ou centro.historia.ul@gmail.com.

Eis o programa:

10h00: Sessão de abertura com António Ventura (Director do CH)
10h15: A guerra no olhar dos Hebreus: vivências históricas e níveis de sentido, por José Augusto Ramos (FLUL/CH)
10h35: A expansão da Assíria e o equilíbrio de poder no Médio Oriente antigo, por António Ramos dos Santos (FLUL/CH)
11h00: As cenas de massacre dos inimigos no templo funerário de Ramsés III, em Medinet Habu, por José das Candeias Sales (U. Aberta/CH)
11h25: A conquista núbia do Egipto, por Luís Manuel de Araújo (FLUL/CH)

15h00: Lançamento do Livro 'A Guerra na Antiguidade III'
15h10: A nudez do guerreiro grego, por Nuno Simões Rodrigues (FLUL/CH)
15h35: Fazer e desfazer a paz na Guerra do Peloponeso (431 a.C – 401 a.C.), por José Varandas (FLUL/CH)
16h00: Os militares lusitanos pelos caminhos do império, por Amílcar Guerra (FLUL/UNIARQ)
16h25: Influências bárbaras no armamento romano, por Miguel Sanches de Baêna (FLUL/CH)
16h50: A guerra contra Jugurta contada por Salústio, por Pedro Gomes Barbosa (FLUL/CH)

imagem: o chamado Mosaico de Alexandre, da Casa do Fauno, Pompeia (c. 100 a.C),
retratando a Batalha de Isso, em 333 a.C., entre Alexandre e Dário III.

O brother, where art thou?


Em 2000 os irmãos Coen realizaram um filme intitulado O brother, where art thou?
O brother, where art thou? é talvez a melhor transposição para cinema da temática da Odisseia de que tenho notícia. É uma Odisseia passada no Mississipi durante a década de 30. E vale a pena ver.

Consta que é o convidado surpresa da Jornada

The sea, autumn mildness, islands bathed in light, fine rain spreading a diaphanous veil over the immortal nakedness of Greece. Happy is the man, I thought, who, before dying, has the good fortune to sail the Aegean Sea.

Many are the joys of this world —women, fruit, ideas. But to cleave that sea in the gentle autumnal season, murmuring the name of each islet, is to my mind the joy most apt to transport the heart of man into paradise. Nowhere else can one pass so easily and serenely from reality to dream. The frontiers dwindle, and from the masts of the most ancient ships spring branches and fruits. It is as if here in Greece necessity is the mother of miracles.

Nikos Kazantzakis, Zorba the Greek, faber and faber (2008)

Onde quer que vá a Grécia fere-me ("Seferis #2")

In the Manner of G. S.

Wherever I travel Greece wounds me.

On Pelion among the chestnut trees the Centaur's shirt
slipped through the leaves to fold around my body
as I climbed the slope and the sea came after me
climbing too like mercury in a thermometer
till we found the mountain waters.
On Santorini touching islands that were sinking
hearing a pipe play somewhere on the pumice stone
my hand was nailed to the gunwale
by an arrow shot suddenly
from the confines of a vanished youth.
At Mycenae I raised the great stones and the treasures of the house of Atreus
and slept with them at the hotel 'Belle Hélène de Ménélas';
they disappeared only at dawn when Cassandra crowed,
a cock hanging from her black throat.
On Spetses, Poros, and Mykonos
the barcaroles sickened me.

What do they want, all those who believe
they're in Athens or Piraeus?
Someone comes from Salamis and asks someone else whether he 'issues forth from Omonia Square'.
'No, I issue forth from Syntagma, ' replies the other, pleased;
'I met Yianni and he treated me to an ice cream.'
Meanwhile Greece is travelling
and we don't know anything, we don't know we're all sailors out of work,
we don't know how bitter the port becomes when all the ships have gone;
we mock those who do know.

Strange people! they say they're in Attica but they're really nowhere;
they buy sugared almonds to get married
they carry hair tonic, have their photographs taken
the man I saw today sitting against a background of pigeons and flowers
let the hands of the old photographer smoothe away the
wrinkles left on his face by all the birds in the sky.

Meanwhile Greece goes on travelling, always travelling
and if we see 'the Aegean flower with corpses'
it will be with those who tried to catch the big ship by swimming after it
those who got bored waiting for the ships that cannot move
the ELSI, the SAMOTHRAKI, the AMVRAKIKOS.
The ships hoot now that dusk falls on Piraeus,
hoot and hoot, but no capstan moves,
no chain gleams wet in the vanishing light,
the captain stands like a stone in white and gold.

Wherever I travel Greece wounds me,
curtains of mountains, archipelagos, naked granite.
They call the one ship that sails AGONY 937.

M/s Aulis, waiting to sail.
Summer 1936




Yorgos Seferis, Complete Poems, The Anvil Press Poetry (1995)

Seferis #1


O que pode uma chama recordar? Se recordar um pouco menos do que for necessário, apaga-se; se recordar um pouco mais do que for necessário, apaga-se. Se ao menos nos pudesse ensinar, enquanto ainda arde, como recordar correctamente.

Yorgos Seferis, Mr. Stratis Thalassinos #5 Homem. Complete Poems, Anvil Press Poetry (1995)


A propósito da Jornada de Cultura Neo-Helénica. Cuja primeira actividade será precisamente uma conferência sobre Seferis, apresentada por Hélio Silva. E vai ser persuavis.

Imagem retirada daqui, aproveitando para salientar o ensaio.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Spartan Golf Club Logo

(retirado daqui)

Pois Bem Dizem Que Este Papa É Um Erudito...

...tanto, que até cita o Heraclito!:
A natureza está à nossa disposição, não como «um monte de lixo espalhado ao acaso» [116], mas como um dom do Criador que traçou os seus ordenamentos intrínsecos dos quais o homem há-de tirar as devidas orientações para a «guardar e cultivar» (Gn 2, 15).

[116]: Heráclito de Éfeso (± 535-475 a.C.), Fragmento 22B124, in H. Diels-W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (Weidmann, Berlim 19526).

Caritas in Veritate
, §48 (disponível aqui).

O fragmento em questão, DK124 (Teofrasto, Metafísica, 15):
Mas mesmo àqueles pareceria absurdo se o Universo inteiro e cada uma das suas partes [fossem] totalmente ordenados quanto à proporção, formas, forças e ciclos, mas que, por outro lado, nada disso [houvesse] quanto aos princípios, como afirma Heraclito, «das coisas* lançadas ao acaso, a mais bela, o cosmo».
Heraclito, Fragmentos Contextualizados
Lisboa, INCM: 2005. (trad.: Alexandre Costa).
[ἄλογον δὲ κἀκεῖνοδόξειεν ἂν, εἰ ὁ μὲν ὅλος οὐρανὸς καὶἕκαστα τῶν μερῶν ἅπαντ΄ ἐν τάξει καὶ λόγῳ, καὶ μορφαῖς καὶ δυνάμεσιν καὶ περιόδοις, ἐν δὲ ταῖς ἀρχαῖς μηθὲν τοιοῦτον, ἀλλ΄ ὥσπερ σάρμα εἰκῆ κεχυ­μένον ὁ κάλλιστος, φησὶν Ἡράκλειτος, [ὁ] κόσμος.]

*apenas para que não se fique a pensar que o papa não sabe traduzir (a tradução, de resto, nem deve ser dele), note-se que o termo grego, de acordo com o LSJ (o dicionário inglês standard), significa, de facto, sweepings, refuse. Isto que não leve a que se desconsidere a tradução portuguesa, um exercício de violência e rigor, e homenagem condigna ao filósofo.

domingo, 16 de maio de 2010

Porque os Fãs de 'Lost' São os Maiores

Retirado da página de discussão do episódio Across the Sea (6x15, emitido dia 11/05), na Lostpedia (o excerto não contém spoilers de maior):

* It is hard to tell, but I believe that they are using (or trying to use) an older, pre-classical version of Latin, which would place the events before 75 BC, or so. In classical Latin -um and -us endings replaced older -om and -os.
* Mother greets Claudia with "Olle quidae gravers?" but olle became obsolete during the transition from Old Latin to Classical Latin, being replaced by ille. Claudia responds to her offer for help with "Gratias ago tibi" where ago should go at the end of the sentence. Those are the only differences between the two.
* "olle" was still used in colloquial Latin and didn't die out in 75BC. In Roumanian - the modern language closest to Latin - olle is still used. Also, the word order does not really matter in Latin, except if you want to stress a certain word. "Gratias ago tibi" is correct, in any timeslot you place it. Think of the latin mass, which has "Gratias agimus tibi" in the gloria. The first written text of the Gloria dates from 382AD.
* Olle was still used in classical Latin, but not in day-to-day conversation. In much the same way, "thou" is still used in English, but rarely. She might as well be saying "Art thou hurt?" Old Latin was loose about word order while Classical Latin put slightly more emphasis on it. She would most likely speak like those who she was around, and the social norm was to put the verb at the end. But, the word order is not indicative of much, as every Roman writer/speaker had their own "style".
* Mother may have been using antiquated speech. We don't know when she learned Latin, and she was apparently ageless. Mother's grammar isn't going to tell us very much.

XII Festival Internacional de Teatro de Tema Clássico - Semana 16 a 22 de Maio


16/05 (Domingo)


O Fulaninho de Cartago, de Plauto, pelo Grupo Thíasos do IEC
Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra, 18:00
(ver resumo aqui)

*
18/05 (Terça)

Anacreontea. Pintar Com Vinho as Setas do Amor.
Recital pelo Grupo Thíasos do IEC
Museu Arqueológico São Miguel, Odrinhas, 11:00
(seguido de workshops de teatro com grupos escolares)

&

Hipólito, de Eurípides, pelo Grupo Thíasos do IEC
Museu Arqueológico São Miguel, Odrinhas, 15:30

SINOPSE
O Hipólito trata acima de tudo o tema do desejo sexual. Fedra apaixona-se perdidamente por Hipólito, seu enteado, que a rejeita por razões religiosas e narcísicas. A peça oscila entre o erotismo desmedido de Fedra e a castidade exagerada de Hipólito, num autêntico "drama de linguagem" em que impera a impossibilidade de comunicação verbal nas situações em que tal contacto humano seria mais necessário.
(retirado do verso da edição da Colibri da tradução de Frederico
Lourenço, que reviu o seu texto para esta encenação do Thíasos)


*
19/05 (Quarta)

(imagem de um aryballos do séc. IV a.C.)

Filoctetes, de Sófocles,
pelo Grupo NET da Escola Secundária Raul Proença, Caldas da Rainha
Ruínas Romanas de Conímbriga, Condeixa, 15:30

SINOPSE
Filoctetes, depois de ser mordido por uma cobra no pé, o que o deixa com uma chaga horrível e cheio de dores, foi abandonado pelos gregos na ilha deserta de Lemnos, quando navegavam para Tróia. Agora, volvidos dez anos, um oráculo revela-lhes que, se querem, de facto, conquistar a cidade, precisam de Filoctetes e do seu arco, que lhe fora dado por Hércules. Ulisses, porém, consciente de que Filoctetes, magoado com a atitude dos seus companheiros, nunca regressará se lho pedirem, manipula Neoptólemo, filho de Aquiles, o único herói grego verdadeiramente amigo de Filoctetes, para que ele convença Filoctetes a dar-lhe o arco e a vir com ele, sem, contudo, lhe revelar que o pretende levar para Tróia para ajudar os gregos. Neoptólemo vê-se assim obrigado a mentir, mas isso não é algo que aceite com facilidade e de imediato começa a ser consumido por dúvidas quanto à justiça da sua acção. Filoctetes, doente, comove-o, mas Ulisses não cessa de lhe relembrar a importância de permanecer fiel à sua missão, fundamental para a vitória grega. Filoctetes é tanto o drama do personagem homónimo quanto o de Neoptólemo e uma das peças simultaneamente mais dolorosas e filosóficas de Sófocles, talvez o mais perfeito dos tragediógrafos.

*
22/05 (Sábado)
As Bodas de Fígaro, de Mozart,
pelo grupo Canto & Drama do Conservatório de Música de Coimbra
Ruínas Romanas de Conímbriga, Condeixa, 21:30

E ainda Édipo


Se este não é o excerto de Rei Édipo mais bem lido que ouvi na vida, não sei qual será...
(Ainda sobre o complexo de Édipo é de ler «Édipo sem Complexo» de Jean-Pierre Vernant que se encontra no livro Mito e Tragédia na Grécia Antiga de Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet.)

Mais (Complexo de) Édipo


The killer awoke before dawn
He put his boots on
He took a face from the ancient gallery
And he walked on down the hall
He went into the room where his sister lived
And then he paid a visit to his brother
And then he walked on down the hall
And he came to a door
And he looked inside
Father?
Yes son
I want to kill you
Mother, I want to f...
[series of incomprehensible sounds]

Versão CD da letra (não coincide com o vídeo) a que, neste caso,
ao contrário do
post anterior, é favor prestar especial atenção.

sábado, 15 de maio de 2010

Édipo

Já que se anda por aqui a falar da casa de Tebas.



(ignorar a letra/texto horrível)

Só Não Subscrevo A Referência Pejorativa Ao Harry Potter

Todos os estudantes terão de ler, obrigatoriamente: A Ilíada e a Odisseia. Aristóteles (que, como dizia Joyce, foi o único que verdadeiramente pensou; os outros, incluindo Kant, limitaram-se a cultivar o mesmo jardim). A Bíblia. O Corão. Os Minima Moralia (Adorno). Os Lusíadas. E mais outras coisas em que vou pensar. [...] Todos terão de estudar Latim (além de Português, Inglês, Espanhol e Francês, pelo menos, claro; talvez Alemão, por causa dos Lieder de Schubert e dos poemas de Goethe e outros que tais) e Matemática do primeiro ao último ano de escolaridade. Todos terão de aprender Música. E História. E Filosofia. E Estética. [...] Uma nota final de esperança, apenas para que não me confundam com o Vasco Pulido Valente [...]: Os putos do meu país têm agora, entre outras coisas boas no meio de tanta desgraça, a Odisseia adaptada por Frederico Lourenço e publicada pelos Livros Cotovia. Podem finalmente descobrir que há vida inteligente depois de "Harry Potter". Deus os abençoe (ao Homero, ao Frederico Lourenço, aos Livros Cotovia e aos putos, claro).

Teresa Pizarro Beleza, 'Os Putos do Meu País — Crónica de uma Mãe Zangada',
MACA (Magazine de Arte de Coimbra & Afins) 09, Abril-Agosto 2010.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Soph. Ant. 354-356 - II

[continuação deste post]
Ora o ateniense do século V a.C., olhando em seu redor, não podia senão considerar que, no seu tempo, sob a batuta de Péricles, o Homem, e com ele a πόλις, e a πόλις, e com ela o Homem, haviam atingido um esplendor absolutamente único (o Parténon estava a ser construído então), uma comunhão justa, que atinge a sua expressão máxima na célebre Oração Fúnebre de Péricles. Como podia o Homem não ter orgulho, Stolz, na sua cidade, construção (em todos os sentidos, também no físico) sua? O grande erro de Creonte, do ponto de vista ético, não do ponto de vista da estrutura da tragédia, é não a ofensa aos deuses — porque dessa não está consciente e é basicamente sincero na sua piedade (não temos aqui tempo de explicar a afirmação) — mas a negação da democracia na figura de Hémon, é negar a cidade aos seus, alienar a πόλις, que se torna coisa estranha ao cidadão, divorciá-los. O orgulho grego, face aos persas, era, como se vê na tragédia de Ésquilo, a certeza de não serem escravos de ninguém (e Creonte, de forma sintomática, chama indirectamente δοῦλος, escrava, a Antígona no v.479), mas livres, porque sob a Lei, em cuja feitura, no caso ateniense, todos participavam (a vitória de Salamina, celebrada na peça de Ésquilo, é aliás crucial para a instauração da democracia na cidade). O Humano é comum: a poesia era representada no teatro de Diónisos e nos simpósios cantavam-se os versos dos poetas; os filósofos discutiam na ágora e nas palestras; as leis eram feitas na Ecclesia, a Assembleia, aberta a todos os cidadãos.

E o Homem contemplou tudo isto, e viu como tudo era bom. E sentia orgulho (Stolz), tanto mais que conseguira tudo isto por si mesmo, ἐδιδάξατο, «ensinou-se» (ou, numa leitura bem mais rara, mas que a minha edição do texto grego da Cambridge, por Mark Griffith, regista: «they taught one another» — de novo a ideia da comunidade, da πόλις). Não há aqui um Prometeu que tenha educado o Homem: ele descobriu tudo sozinho. Como o escravo hegeliano de Kojève, a Natureza ofereceu-lhe resistência, ele trabalhou-a, e, nas coisas que produziu que estão fora de si, encontrou, reflectido, o seu eu, e acha por elas a certeza de si mesmo.

Mas a ambiguidade do conhecido δεινότερον (o mais assombroso, nos dois sentidos: de causar espanto/admiração e de inspirar medo) do começo do Canto é transferida também por Hölderlin para Stolz. O orgulho, de facto, tanto pode ser um sentimento profundamente positivo (um reconhecimento do valor de algo em que de certa forma tivemos parte, e cujo sucesso, por isso, nos deixa felizes), como, por exemplo, na tradição cristã, um pecado, ou, transferindo esta carga negativa para o mundo grego, e sem equiparar de forma alguma as duas realidades, uma hybris. Níobe, personagem com que Antígona, a um dado momento e por outras razões, se compara, é castigada precisamente porque se vangloriou, orgulhosa, da sua prole.

Podemo-nos perguntar até que ponto o orgulho de governar cidades («städtebeherrschenden Stolz»), no seu pior sentido, não é precisamente a falha, hamartia, que condena Creonte. Neste contexto, seria bom revertermos à nossa sugestão de traduzir beherrschen não por governar, o seu sentido vulgar, mas literalmente por dominar. A πόλις é confundida com o οἶκος, a casa (o domínio próprio do senhor, que impõe a sua regra), e isto não é apenas uma metáfora: Polinices é simultaneamente inimigo político de Creonte e seu sobrinho; os dois planos misturam-se, e a sensatez aconselharia a que, num caso destes, o rei não se pronunciasse. Creonte, para provar que não confunde as duas esferas, acaba por exagerar numa, a política (com isto não pretendo resumir o conflito em Antígona a este exagero, tal como ele não pode ser reduzido à obstinação de Antígona).

Note-se como, na tradução do adjectivo por Hölderlin, do ponto de vista etimológico, νόμος, a Lei, é substituído por Herr. O alemão é suficientemente ambíguo para que o possamos ler das duas maneiras, com boa vontade, mas o confronto com o grego deixa a nu os jogos do Poeta, que captura assim toda a ironia que se diz tão própria dos coros sofoclianos. A mesma expressão, na versão mais rica de Hölderlin, tanto pode designar, como vimos, um ímpeto íntrinseco ao Homem, partilhado, como o abuso hybrístico dele por um só. Mas é de fazer a pergunta mais séria, e fundamental para a compreensão da tragédia como um todo: é Creonte que abusa desta ὀργή ou, pelo contrário, ela é, em si mesma, um desafio aos deuses? Em suma: é a πόλις uma hybris?

Os deuses parecem de facto manifestar nalgumas tragédias um salutar desprezo pelas instituições humanas, de que acabam fazendo pouco: caso paradigmático disso serão As Bacantes, de Eurípides. Não deixa de ser estranhamente macabro, aliás, que o coro na Antígona, literalmente do princípio (do párodo) ao fim (ao canto quinto), evoque o der kommende Gott, o deus a caminho, Diónisos, pedindo-lhe que venha até à cidade — e esta acaba, uma vez mais, destruída, mesmo se o deus, aparentemente, nunca chega. Noutras peças, pelo contrário, são os deuses que tomam a iniciativa de fundar instituições para o Homem, como Atena, no final da Oresteia, ela que cria o Areópago, o primeiro tribunal da cidade. Esta não parece ser a perspectiva do coro, que, como vimos, assevera que a organização política é uma coisa aprendida pelo Homem por si próprio, sem ajuda. É uma perspectiva que faz todo o sentido: afinal, que podem os deuses perceber da cidade? O Olimpo não é uma πόλις (não tem gente para isso, diria Aristóteles) e entre os deuses, por antropomórficos que sejam, as questões não se põem nos mesmos termos que entre os homens, que estão abandonados na aprendizagem de como lidarem consigo (recordemos aqui o poema final da Bíblia do Poeta, A Rosa do Mundo, intitulado Testamento, de Ewa Lipska [trad.: Aleksandar Jovanovic]: «Após a morte de Deus/ abriremos o testamento/ para saber/ a quem pertence o mundo/ e aquela grande armadilha/ de homens»). Os deuses são antes uma família (literalmente), o que, dentro da dinâmica de binómios da peça, os opõe directamente à πόλις (e ao lado de Antígona, claro).

E, todavia, sabemos que os deuses protegem a cidade (isso é-nos dito no párodo) e que tem de haver alguma verdade na intuição desse teólogo maior da Grécia, Ésquilo. Qual o interesse dos deuses em zelarem pela πόλις? Corro o risco de, chegado ao final desta especulação, ter percebido que teria sido melhor concordar com Protágoras e dizer que afinal nada posso saber sobre os deuses, pois «muitos são os obstáculos desse saber: a obscuridade e a brevidade da vida humana» [DK B4] (trad.: Ana Alves de Sousa e Maria Vaz Pinto). Parece-me, contudo, que este cuidado da parte dos deuses se deve tão somente ao facto de também o culto depender sempre de uma comunidade (não necessariamente a πόλις, é certo; pode ser a família, como na Antígona — mesmo se a coisa é mais complexa, mas não há aqui espaço para isso). Para os deuses, porém, a hierarquia é clara: a πόλις só pode subsistir enquanto assegurar o culto daqueles que a permitem. É por isso que a cidade, para ser «alta» [ὑψίπολις, v.370] (elevada? honrada?), tem de respeitar as leis dos deuses [368-9]. Isso é condição de possibilidade da sua prosperidade. A cidade não será, per se, hybrística, mas corre o perigo latente de, como no caso de Antígona, assistir à colisão das duas esferas, a dos deuses e a da cidade.

Poder-me-ão acusar de anacronismo: o grego não conseguia conceber o conflito cidade/deuses. Na Grécia, a religião tinha aliás um carácter cívico e político: a boa cidade respeitava os seus deuses. Mas todo o discurso oficial também não permitiria adivinhar o embate indivíduo/família vs. πόλις e esse dificilmente alguém negará que percorre toda a peça. É importante realçar que é no contexto desta oposição que surge a tensão deuses/cidade. Ela não é colocada isoladamente, sem contexto, género o Homem contra os deuses — o mais perto disso que a mitologia grega conhece é ainda Prometeu (de novo Prometeu). A tensão, porém, está lá. Um dos cinco binómios que conduzem a Antígona, na opinião de Steiner, é precisamente este (deuses/Homem). Ora se Antígona, isso é claro, nesta oposição, representa os deuses, então Creonte, a cabeça da πόλις, não pode senão simbolizar o Homem (por incómodo que isto seja: gostaríamos talvez de um melhor advogado), que, paradigmaticamente, acaba feito nada (v. 1325) pelos deuses. Num golpe de ironia, é a cidade, via Creonte, e não tanto Antígona (v.821), que se revela αὐτόνομος, aquela que dá as leis a si mesma, as leis que aprendeu, sozinha (ἐδιδάξατο) e orgulhosa (stolz). Se Antígona morre em virtude da sua «autonomia», porque ignora a πόλις, também assim a cidade, que ignora os deuses. A cidade é anterior ao Homem, os deuses antecedem a πόλις, e o que nos precede, se é condição de possibilidade de quanto somos, é também limitação (mesmo se não determinação). Mas ficamos por aqui, à soleira dessoutra reflexão que Antígona suscita, sobre a liberdade (ou não) de acção. Fim dos luftigen Gedanken.

imagem: Ismena e Antígona, de Emil Teschendorff

Soph. Ant. 354-356 - I


καὶ φθέγμα καὶ ἀνεμόεν
φρόνημα καὶ ἀστυνόμους
ὀργὰς ἐδιδάξατο

Assim começa a terceira estrofe (segunda, do ponto de vista técnico: a anterior é uma antístrofe) do primeiro canto (gosto muito do nome songs que se encontra em certos textos ingleses para designar os estásimos e creio só haver vantagens em o importar: mais lírico e mais próximo, retira esoterismo às clássicas e lembra a natureza musical do texto, mesmo se, em abono da verdade, tenho de admitir que introduz alguma confusão, pois que o párodo, a bem dizer, não deixa também de ser um canto) da Antígona de Sófocles, a famosa Ode ao Homem (vv.332-375). Na tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, a tradução standard, editada pela Gulbenkian (utilizo, porém, a edição do FESTEA, aqueles livrinhos a5 simpáticos, de capa branca, distribuídos com as representações do Thíasos, o grupo de teatro clássico da FLUC), lê-se:
A fala e o alado pensamento,
as normas que regulam as cidades
sozinho aprendeu
Rocha Pereira ignora por completo ὀργὰς, impulsos, que subsome no adjectivo que, no grego, qualifica o nome: ἀστυνόμους, composto que reúne ἄστυ, cidade, e νόμος, termo problemático, polissémico, que poderíamos arriscar traduzir aqui por lei (donde palavras como autónomo, aquele que se dá as suas leis). Não me recordo já de como, na recentíssima tradução feita por Marta Várzeas para o TNSJ, para a encenação da peça por Nuno Carinhas, este passo era vertido, e, como dizia Wittgenstein, sobre o que não podemos falar, melhor é que guardemos silêncio. Tenho porém comigo a tradução de Fernando Melro, editada na série de clássicos da Inquérito, ainda menos exacta (e em prosa), donde desapareceu também o ὀργὰς:
Ele conhece a palavra, o pensamento alado, os costumes urbanos
(Apenas para que se entenda melhor esta tradução, diga-se que νόμος, um dos significados mais comuns que tem e que há pouco, por conveniência, omiti, é precisamente o de costume). Das que conheço, só a tradução publicada pela Verbo, no âmbito da mítica série dos Livros RTP, da autoria de António Manuel Couto Viana (que nem tenho a certeza que tenha traduzido directamente do original), não escamoteia o termo grego:
o homem que, por si próprio, aprendeu a falar e tem pensamentos rápidos como o vento, e criou em si um carácter que regula a vida em sociedade
ὀργὰς aparece-nos aqui como carácter, o que não é uma tradução totalmente desacertada, mesmo se a carácter corresponde mais o grego ἦθος. Se formos ao dicionário (o Middle Liddell, conhecido dos estudantes de Clássicas), encontramos como significados para ὀργὰς impulso natural, propensão, temperamento, disposição, natureza. Hölderlin, porém, na sua famosa recriação poética (aqui o termo de Frederico Lourenço é apropriado), escreve assim estes versos:
Und die Red' und den luftigen
Gedanken und städtebeherrschenden Stolz
Hat erlernet er
algo como:
E o Discurso e os aéreos
Pensamentos e o Orgulho de governar cidades
Ele aprendeu
(aéreos não deve aqui ser lido no sentido pejorativo que, em combinação com pensamentos, tende a ter na nossa língua; com aéreos quis apenas manter-me o mais próximo possível do étimo do adjectivo alemão, luftigen, que vem de Luft, «ar»). A tradução de ὀργὰς por Stolz, «orgulho», é ilustrativa da peculariedade da versão de Hölderlin, que dialoga reciprocamente com o original de Sófocles, apurando-o e aparando-o (nos dois sentidos deste verbo). Hölderlin não se contenta em traduzir ὀργὰς por Trieb, «impulso», «ímpeto», a tradução costumeira no alemão: ele interroga esse temperamento (Stimmung, para usar o termo heideggeriano) para o definir, aperta-o — espremo-o, poderíamos dizer — até à depuração (como para se fazer um perfume é preciso triturar os botões das flores como uvas no lagar), que é aqui uma concretização. Hölderlin afia a palavra como a faca, ele que apontou o lado mortífero do discurso entre os gregos (Hipólito, lembrava, morre directamente por causa das palavras do pai: a palavra é uma arma, cf. Neil Gaiman, Sandman #4, o duelo entre Dream e Choronzon), quer extrair a sua verdade.

Ora qual a natureza do impulso, ὀργή, que guia o homem (beherrschenden, em städtebeherrschenden, contém Herr, 'senhor'; uma tradução mais apropriada do verbo seria não tanto 'governar' mas 'dominar', enfatizando o lado masculino do poder) na condução da cidade? Hölderlin responde: o orgulho. O homem tem na cidade, politicamente compreendida, na πόλις, a тιμή (a honra que lhe é devida) máxima de ser Homem. O Homem é ζῷον πολιτικόν (bicho político, na célebre definição de Aristóteles, Pol. 1253a): é na comunidade que se faz humano («A πόλις é a mestra do Homem», Simónides, fr. 90 West). A πόλις suprema é a cidade do último Homem (não confundir com a figura do mesmo nome no Zaratustra de Nietzsche): a perfeição das estruturas políticas (aqui no sentido mais lato do termo, o grego) corresponde ao grau final de humanização do Homem. Num regime injusto, nem todos os homens podem ser bons, e o mal, mesmo se pequeno a princípio, tem a rapidez dos coelhos a reproduzir-se e do bambu a crescer; um regime justo com homens maus, por sua vez, não se aguenta, porque os prejudica.

Se o Homem não pertence fundamentalmente à Natureza (verdade que atinge no mito do Génesis a sua formulação arquetípica máxima) — poder-se-ia dizer da relação Homem-Natura o que dizem os cristãos sobre a sua relação com o mundo: estamos no mundo mas não somos do mundo, adaptando: estamos na Natureza, mas não somos da Natureza, ou se calhar seria mais justo dizer o inverso, mas também mais trágico, porque situação irreversível, ontologicamente mais violenta, presos num sítio não naturalmente (literalmente, aqui, o advérbio) nosso e todavia impedidos de sair — ele tem portanto de arranjar o seu habitat, de o construir: é a πόλις, o espaço que cria para si. A linguagem da πόλις é, de facto, a do fabrico: Creonte, que tudo define em função da cidade («não teria por amigo próprio um varão que quisesse mal à nossa terra» [187-8], trad.: MHRP), fala explicitamente em «fazer amigos» (τοὺς φίλους ποιούμεθα) [190]. Verum quia factum, afirmava Vico, «verdadeiro porque feito». A πόλις é a realidade humana por excelência, a sua maior criação, obra colectiva, no duplo sentido de ser, como dizia Lincoln, for e by (era em Atenas sob Péricles que Sófocles pensava quando escreveu esta Ode) the people.

A πόλις é o espaço que o Homem recortou no real para si, o seu τέμενος (o espaço delimitado e consagrado a um deus, para o seu templo). A Natureza é-lhe contrária, como vimos, mas ele triunfou sobre ela, como canta o coro: navega o mar, esventra a terra pelo seu alimento, captura as aves, doma o cavalo, caça a besta dos bosques e até das doenças vai começando a saber escapar. Afirma-se então como humano, numa tríplice vertente: poeta (φθέγμα, som da voz/Rede, discurso), filósofo (φρόνημα/Gedanken, pensamentos) e, em último lugar, legislador (ἀστυνόμους ὀργὰς/städtebeherrschenden Stolz, orgulho de governar cidades). Faz parte da natureza intrínseca do Homem, do seu «princípio de crescimento» (φύσις), esta sua ὀργή (impulso, ímpeto). Ele cresce precisamente na medida em que cumpre com este princípio, como acima vimos. A legislação é uma maneira de potenciação do humano, de afirmação do que é dele.

[a continuar]

imagem: Antígona e Creonte, desenho de Jean Cocteau.