sábado, 30 de outubro de 2010

Estudantes Sem Bolsa (Mas Com Amigos Ricos)

Eudoxus of Cnidos, the son of Aeschines, was an astronomer, a geometer, a physician and a legislator. He learned geometry from Archytas and medicine from Philistion the Sicilian, as Callimachus tells us in his Tables. Sotion in his Successions of Philosophers says that he was also a pupil of Plato. When he was about twenty-three years old and in straitened circumstances, he was attracted by the reputation of the Socratics and set sail for Athens with Theomedon the physician, who provided for his wants. Some even say that he was Theomedon's favourite. Having disembarked at Piraeus he went up every day to Athens and, when he had attended the Sophists' lectures, returned again to the port [11 km em cada direcção!: tinha quarto no Pireu, onde era muito mais barato]. After spending two months there, he went home and, aided by the liberality of his friends, he proceeded to Egypt with Chrysippus the physician, bearing with him letters of introduction from Agesilaus to Nectanabis, who recommended him to the priests. There he remained one year and four months [...].

Diógenes Laércio, Vidas e Opiniões de Filósofos Eminentes 8.8
Harvard University Press, Cambridge MA: 1925. (trad.: Robert Hicks).

[Εὔδοξος Αἰσχίνου Κνίδιος, ἀστρολόγος, γεωμέτρης, ἰατρός, νομοθέτης. οὗτος τὰ μὲν γεωμετρικὰ Ἀρχύτα διήκουσε, τὰ δ᾽ ἰατρικὰ Φιλιστίωνος τοῦ Σικελιώτου, καθὰ Καλλίμαχος ἐν τοῖς Πίναξί φησι. Σωτίων δ᾽ ἐν ταῖς Διαδοχαῖς λέγει καὶ Πλάτωνος αὐτὸν ἀκοῦσαι. γενόμενον γὰρ ἐτῶν τριῶν που καὶ εἴκοσι καὶ στενῶς διακείμενον κατὰ κλέος τῶν Σωκρατικῶν εἰς Ἀθήνας ἀπᾶραι σὺν Θεομέδοντι τῷ ἰατρῷ, τρεφόμενον ὑπ᾽ αὐτοῦ: οἱ δέ, καὶ παιδικὰ ὄντα: καταχθέντα δ᾽ εἰς τὸν Πειραιᾶ ὁσημέραι ἀνιέναι Ἀθήναζε καὶ ἀκούσαντα τῶν σοφιστῶν αὐτόθι ὑποστρέφειν. δύο δὴ μῆνας διατρίψαντα οἴκαδ᾽ ἐπανελθεῖν καὶ πρὸς τῶν φίλων ἐρανισθέντα εἰς Αἴγυπτον ἀπᾶραι μετὰ Χρυσίππου τοῦ ἰατροῦ, συστατικὰς φέροντα παρ᾽ Ἀγησιλάου πρὸς Νεκτάναβιν: τὸν δὲ τοῖς ἱερεῦσιν αὐτὸν συστῆσαι. καὶ τέτταρας μῆνας πρὸς ἐνιαυτῷ διατρίψαντ᾽...]

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Estórias Da Roma Antiga - I






















Acabam de ser publicados dois romances cuja acção decorre no tempo do Império Romano, razão por que aqui fazemos eco do seu lançamento. Por curiosa coincidência, os dois têm um subtexto cristão, um mais explicitamente programático, outro, por seu lado, mais liberal no tratamento da matéria, parece. A Aletheia (agradeço à Ália por me ter chamado a atenção) lançou Calista, a Escultora Grega - Uma Narrativa do Século III, do Cardeal Newman, sem dúvida a propósito da recente beatificação do autor, aquando da visita de Bento XVI a Inglaterra.

De acordo com o resumo disponível, a acção «desenrola-se nos primórdios do Cristianismo, no nordeste do continente africano, perto de Cartago, cerca do ano 250 DC, durante o reinado do Imperador Décio. A encantadora e talentosa jovem grega Calista, juntamente com o seu irmão Aristo, aplica as suas artes na loja de Jucundus, na pequena cidade de província Sicca, decorando imagens pagãs de deuses, ídolos e outros itens de adoração. Calista sente o vazio e a inoperância do mundo romano e até do mundo grego de moralidade e filosofia, e nunca acreditou nos seus deuses. É por isso tentada pela beleza do Cristianismo pelo sobrinho de Juccundus que tenta persuadi-la a casar com ele. Será, no entanto, o bispo de Cartago, S. Cipriano, e S. Lucas, cujo evengelho o primeiro lhe dá a ler quando é atirada para a prisão falsamente acusada de ser cristã, que a converterá definitivamente. Calista acaba por ser baptizada numa cerimónia na prisão, vindo a ser brutalmente martirizada pouco depois.»

Pela Sextante saiu A Assombrosa Viagem de Pompónio Flato, de Eduardo Mendoza. «No século I da nossa era, Pompónio Flato viaja pelos confins do Império Romano em busca de águas com efeitos prodigiosos. O acaso e a precariedade da sua sorte levam-no a Nazaré, onde vai ser executado o carpinteiro da aldeia, acusado do assassinato brutal de um rico cidadão. Contra a sua vontade, Pompónio vê-se imerso na investigação do crime, contratado por um extraordinário cliente: o filho do carpinteiro, criança cândida e singular, convencida da inocência do pai. Cruzando os géneros histórico, policial, hagiográfico e a paródia de todos eles, eis a obra mais insólita e surpreendente de Eduardo Mendoza, e também uma das mais ferozmente divertidas», ou assim o diz a editora.

Confesso que ambos me intrigam: este último pela premissa-promessa de um certo humor, o primeiro por abordar um período que cada vez mais me fascina, em boa medida precisamente pela turbulência religiosa desses séculos. Fica aqui a publicidade, então, para os interessados.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Greek Statues Were Brightly Painted and Kind of Stupid Looking

The Perception:

Quick, what do you picture in your head when we say, "Ancient Greece"? If you're like most people you either picture lots of dudes standing around in togas, or white marble statues with no pupils in their eyes:


"Colorful clothes are for gangbangers and homosexuals."

Those ornate statues made of pure white marble, depicting the austere beauty and power of epic gods and heroes, have made quite an impression on history. Renaissance sculptors carved their own marble statues based on the belief that that's how the ever wise Greeks did things.

The Reality:

Ancient Greece looked more like someone crashed their LGBT pride parade into a Mardi Gras Festival.

Recent studies using the awesome powers of lasers and shit (no, seriously!) have found that once completing the iconic marble statues and buildings we know today, the Greeks covered them head to toe in bright primary colors. Greek sculptors worked together with painters to come up with psychedelic patterns and colors to make their statues and buildings pop.

So in the midst of all that theorizing and philosophizing, the Greeks were also really focused on making sure their day to day life looked like the album cover of Magical Mystery Tour. Oh, and you know the iconic Parthenon? Based on the way buildings were painted back then, it was most likely an eye-searing mash of bright yellow, red and blue.

Why We Picture it Wrong:

As years passed, like with the Pyramids, the primitive paint used on the statues chipped and wore off, so when they were rediscovered by later civilizations, they appeared in their all white form. And frankly people just liked the idea of the all white marble look.

Even so, archaeologists knew that the statues used to be painted, since there were ancient records showing people painting the damned things. However, people simply preferred to display the plain white statues, since they looked more like something made by the founders of Western civilization should look like, in the minds of many scholars. Pure, clean, capturing the shape and essence of scientific accuracy and artistic beauty--whereas the painted versions kinda looked like something you might have made during middle school art class.



Read more: http://www.cracked.com/article_18627_6-things-from-history-everyone-pictures-incorrectly_p1.html#ixzz13bAaOJ4l

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Contra Heraclito

Quando o rio é lento e se conta com uma boa bicicleta ou cavalo, sim, é possível banharmo-nos duas (e até três, consoante as necessidades higiénicas de cada um) vezes no mesmo rio.
Augusto Monterroso, citado em epígrafe na Literatura Nazi nas Américas,
de Bolaño (Quetzal, Lisboa: 2010). [via Bibliotecário de Babel.]

imagem: pormenor da fachada de Almada para a Faculdade de Direito da UL.
Na parte inferior, Heraclito, contemplando o rio, acompanhado do seu famoso dito (em letras gregas).

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Opera in Fieri - Take III

(clicar para ampliar)
O Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos volta a promover nova edição, esta minimalista, dos Opera in Fieri, em que se oferece aos doutorandos a possibilidade de exporem parte do trabalho que têm desenvolvido, acompanhados de um comentador e abrindo-se depois a discussão ao público presente. Como sempre, a sessão terá lugar na sala do Centro, na Faculdade de Letras de Coimbra, esta sexta, dia 29, às 11:00. Anita Martins falará de Frei Luís de Granada, estando o comentário a cargo de Carlos de Jesus. Antes, Virgínia Soares Pereira abordaria o tema da história e do mito na obra de Frei Gil de Santarém.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Confirmação da Profecia do Post Anterior

Imagine uma geometria que, além de ter os lados perfeitos,
ainda libertasse calor — eis Maria E (disse Thom C).
Maravilhado, assim, com tal descrição do corpo feminino
— uma geometria com temperatura —, Bloom,
enquanto caminhava, lembrou-se da velha sabedoria
de Platão que, à entrada da sua academia, havia escrito:
«Não entre aqui quem não souber geometria.»
A filosofia, finalmente,
entusiasma certos órgãos que não o cérebro
— ironiza Bloom; e não pôde então deixar de pensar
como tal frase clássica ficaria perfeita
pendurada na entrada de um bordel.

Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia (Caminho, Lisboa: 2010).

*
comentário:


a Grécia / de cabeça para baixo


É indispensável tornar conhecidas acções terrestres
com o comprimento do mundo e a altura do céu,
mas é importante também falar do que não é assim
tão longo ou alto.
É certo que os Gregos tentaram aperfeiçoar
tanto a Verdade quanto o gesto,
porém as ideias foram de longe as coisas mais mudadas.
Eis o momento de colocar a Grécia
de cabeça para baixo
e de lhe esvaziar os bolsos, caro Bloom.

Canto I.11

Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia. Caminho (2010)

Tenho a impressão de que vamos para aqui deixar muito deste livro. Fiat.

domingo, 24 de outubro de 2010

Mediterrâneo

O poema diz-se enquanto a tarde se instala
Através das paredes nuas da casa.

A média-luz do início faz-nos lembrar
Que o branco
É um estado mediterrânico de ser.

O corpo do mar é longo e calmo
E repousa sobre o sol
No pátio quadrado da casa da ilha.

Há algures o cheiro novo dos orégãos
E do azeite.
Nas ânforas guardadas na rua
Restam as esperanças antigas
Do dia de amanhã.

As aranhas trabalham desafogadamente,
Enquanto vem a tarde
No seu labor de séculos.

O sumo das laranjas frescas
Refresca-me.

Tudo é natural e bom
Na tarde branca e fresca da ilha,
Como se as coisas vivessem
Espantadas de ser elas.

Lar antigos dos deuses,
Pátio da eterna recriação,
Viagem à Hélade antiga
Em busca de algo que perdemos
E não conseguimos lembrar,
Memória das tardes brancas do sol.

Filipe Gouveia de Freitas, in:

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Sobre a Ressurreição — Bizantinices Agustinianas

Resta, portanto, concluir que cada um receberá a estatura que lhe é própria, quer seja a que teve na juventude, embora tenha morrido velho, quer seja a que viria a ter se morreu antes dela — e o que diz o Apóstolo acreca da «medida da plenitude da idade de Cristo» (Ef. 4, 13), temos que o entender num outro sentido [...]. Devemos compreender que os corpos dos mortos não ressuscitarão numa forma nem maior nem menor do que a da juventude, mas na idade e com o vigor até aos quais Cristo chegou cá (é realmente por volta dos trinta anos que a juventude atinge o seu pleno desenvolvimento, dizem os mais doutos homens do século: quando ela tiver ultrapassado o seu período próprio, começa então o homem a pender para o declínio duma idade mais grave e senil). Por isso é que se não disse «à medida do corpo» ou «à medida da estatura», mas «à medida da plenitude da idade de Cristo».

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro XXII, Cap. XV
Gulbenkian, Lisboa: 1995. (trad.: J. Dias Pereira).

[Restat ergo, ut suam recipiat quisque mensuram, quam uel habuit in iuuentute, etiamsi senex est mortuus, uel fuerat habiturus, si est ante defunctus, atque illud, quod commemorauit apostolus de mensura aetatis plenitudinis Christi, aut propter aliud intellegamus dictum esse, id est, ut illi capiti in populis Christianis accedente omnium perfectione membrorum aetatis eius mensura compleatur, aut, si hoc de resurrectione corporum dictum est, sic accipiamus dictum, ut nec infra nec ultra iuuenalem formam resurgant corpora mortuorum, sed in eius aetate et robore, usque ad quam Christum hic peruenisse cognouimus (circa triginta quippe annos definierunt esse etiam saeculi huius doctissimi homines iuuentutem; quae cum fuerit spatio proprio terminata, inde iam hominem in detrimenta uergere grauioris ac senilis aetatis); et ideo non esse dictum in mensuram corporis uel in mensuram staturae, sed in mensuram aetatis plenitudinis Christi.]

*

Alguns, baseados nestas palavrs — «Até que cheguemos todos à unidade da fé, ao homem perfeito, à medida da plenitude da idade de Cristo» (Ef. 4, 13) — e nest'outras — «conformes à imagem do Filho de Deus» (Rom. 8, 29) — não acreditam que as mulheres hão-de ressuscitar com o sexo feminino, mas todas no sexo masculino, porque Deus fez apenas o home de barro e, à mulher, tirou-a do homem. Mas a mim parece-me que são mais judiciosos os que não duvidam de que ambos os sexos hão-de ressuscitar. É que, lá no Alto, não haverá já a paixão (libido) que é a causa de toda a perturbação. Realmente, homem e mulher, antes de pecarem, estavam nus e nem por isso se sentiam perturbados. Desses corpos serão extirpados os vícios e será conservada a natureza. O sexo feminino, porém, não é vício, mas natureza, embora, na verdade, doravante liberta do coito e do parto; subsistirão, porém, os órgãos femininos, não já acomodados ao antigo uso mas a uma nova beleza, com que já não será aliciada a concupiscência, que se anulará, dos que para ela reparam, mas com que serão louvadas a sabedoria e a clemência de Deus, que fez o que não era e libertou da corrupção o que fez.

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro XXII, Cap. XVII
Gulbenkian, Lisboa: 1995. (trad.: J. Dias Pereira).

[Nonnulli propter hoc, quod dictum est: Donec occurramus omnes in uirum perfectum, in mensuram aetatis plenitudinis Christi, et: Conformes imaginis filii Dei, nec in sexu femineo resurrecturas feminas credunt, sed in uirili omnes aiunt, quoniam Deus solum uirum fecit ex limo, feminam ex uiro. Sed mihi melius sapere uidentur, qui utrumque sexum resurrecturum esse non dubitant. Non enim libido ibi erit, quae confusionis est causa. Nam priusquam peccassent, nudi erant, et non confundebantur uir et femina. Corporibus ergo illis uitia detrahentur, natura seruabitur. Non est autem uitium sexus femineus, sed natura, quae tunc quidem et a concubitu et a partu inmunis erit; erunt tamen membra feminea, non adcommodata usui ueteri, sed decori nouo, quo non alliciatur aspicientis concupiscentia, quae nulla erit, sed Dei laudetur sapientia atque clementia, qui et quod non erat fecit et liberauit a corruptione quod fecit.]

*

Chegou a altura de resolver a questão, que parece ser a mais difícil de todas, em que se pergunta: quando a carne de um homem morto se torna carne de outro que vive, a qual deles de preferência deve voltar? Se, com efeito, alguém, oprimido e compelido pela fome, se alimentar de cadáveres humanos (esta mal já aconteceu algumas vezes, como no-lo atesta a história antiga e no-lo ensinam desgraçadas experiências dos nossos tempos), poderá sustentar-se com inteira verdade que tudo foi eliminado através das vias inferiores, sem nada ter sido assimilado e transformado na carne dele, quando a própria magreza que foi e já não é mostra à saciedade que perdas foram reparadas com este alimento? Já apresentei um pouco antes algumas observações que devem servir para resolver também esta dificuldade. Tudo o que a fome consumiu de carne se diluiu com certeza no ar donde, já o dissemos, Deus omnipotente pode buscar o que desapareceu. Esta carne poderá, portanto, ser restituída ao homem em quem ela tinha sido primitivamente uma carne humana. Realmente, ela deve ser considerada como se tivesse sido tomada de empréstimo pelo outro: e, como o dinheiro alheio, deve voltar àquele de quem ela se tomou. Mas aquele a quem a fome tinha esgotado receberá a sua própria carne daquele que pode ir buscar mesmo o que se diluiu no ar — e mesmo que tivesse perecido totalmente e dela não restasse qualquer elemento nos recônditos da natureza, o Omnipotente a reconstituiria, tirando-a donde lhe aprouvesse. Mas, devido à expressão da Verdade, em que se diz «nenhum cabelo da vossa cabeça perecerá» (Lc 21, 18) é absurdo pensarmos que, quando nem um cabelo do homem pode perecer, possam desaparecer tantas carnes devoradas e consumidas pela fome.

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro XXII, Cap. XX
Gulbenkian, Lisboa: 1995. (trad.: J. Dias Pereira).

[Vnde iam etiam quaestio illa soluenda est, quae difficilior uidetur ceteris, ubi quaeritur, cum caro mortui hominis etiam alterius fit uiuentis caro, cui potius eorum in resurrectione reddatur. Si enim quispiam confectus fame atque compulsus uescatur cadaueribus hominum, quod malum aliquotiens accidisse et uetus testatur historia et nostrorum temporum infelicia experimenta docuerunt: num quisquam ueridica ratione contendet totum digestum fuisse per imos meatus, nihil inde in eius carnem mutatum atque conuersum, cum ipsa macies, quae fuit et non est, satis indicet quae illis escis detrimenta suppleta sint? Iam itaque aliqua paulo ante praemisi, quae ad istum quoque nodum soluendum ualere debebunt. Quidquid enim carnium exhausit fames, utique in auras est exhalatum, unde diximus omnipotentem Deum posse reuocare, quod fugit. Reddetur ergo caro illa homini, in quo esse caro humana primitus coepit. Ab illo quippe altero tamquam mutuo sumpta deputanda est; quae sicut aes alienum ei redhibenda est, unde sumpta est. Sua uero illi, quem fames exinanierat, ab eo, qui potest etiam exhalata reuocare, reddetur. Quamuis etsi omnibus perisset modis nec ulla eius materies in ullis naturae latebris remansisset, unde uellet, eam repararet Omnipotens. Sed propter sententiam Veritatis, qua dictum est: Capillus capitis uestri non peribit, absurdum est, ut putemus, cum capillus hominis perire non possit, tantas carnes fame depastas atque consumptas perire potuisse.]

imagem: Ressureição, de El Greco
1584-94, @ Museu do Prado, Madrid.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Para Resolver a Crise Económica

Tomemos como exemplo o que se conta acerca de Tales de Mileto: o estratagema que usou para adquirir riqueza, ainda que atribuído à sua sabedoria, não passa da aplicação de um princípio geral. Consta que o censuravam por ser pobre, atribuindo isso à inutilidade da filosofia. O facto é que, devido aos seus conhecimentos de astronomia, previu a proximidade de uma boa colheita de azeite; quando ainda era Inverno, alugou com o pouco dinheiro que tinha todos os lagares de Mileto e Quios, gastando apenas uma pequena soma, já que não havia outras ofertas mais avultadas. Quando chegou o tempo da colheita, e porque muita gente acudiu ao mesmo tempo e com urgência à busca de lagares, arrendou-os ao preço que bem entendeu, não só obtendo uma soma elevada de dinheiro como provando que era fácil, para os filósofos, tornarem-se ricos se assim o desejassem, embora não fosse essa, de facto, a meta das suas aspirações. Tales terá dado, assim, ao que consta, prova inequívoca da sua sabedoria.

Aristóteles, Política 1259a5-20
Vega, Lisboa: 1998 (trad.: António Amaral e Carlos Gomes).

[πάντα γὰρ ὠφέλιμα ταῦτ᾽ ἐστὶ τοῖς τιμῶσι τὴν χρηματιστικήν, οἷον καὶ τὸ Θάλεω τοῦ Μιλησίου: τοῦτο γάρ ἐστι κατανόημά τι χρηματιστικόν, ἀλλ᾽ ἐκείνῳ μὲν διὰ τὴν σοφίαν προσάπτουσι, τυγχάνει δὲ καθόλου τι ὄν. ὀνειδιζόντων γὰρ αὐτῷ διὰ τὴν πενίαν ὡς ἀνωφελοῦς [10] τῆς φιλοσοφίας οὔσης, κατανοήσαντά φασιν αὐτὸν ἐλαιῶν φορὰν ἐσομένην ἐκ τῆς ἀστρολογίας, ἔτι χειμῶνος ὄντος εὐπορήσαντα χρημάτων ὀλίγων ἀρραβῶνας διαδοῦναι τῶν ἐλαιουργίων τῶν τ᾽ ἐν Μιλήτῳ καὶ Χίῳ πάντων, ὀλίγου μισθωσάμενον ἅτ᾽ οὐθενὸς ἐπιβάλλοντος: ἐπειδὴ δ᾽ ὁ καιρὸς [15] ἧκε, πολλῶν ζητουμένων ἅμα καὶ ἐξαίφνης, ἐκμισθοῦντα ὃν τρόπον ἠβούλετο, πολλὰ χρήματα συλλέξαντα ἐπιδεῖξαι ὅτι ῥᾴδιόν ἐστι πλουτεῖν τοῖς φιλοσόφοις, ἂν βούλωνται, ἀλλ᾽ οὐ τοῦτ᾽ ἐστὶ περὶ ὃ σπουδάζουσιν. Θαλῆς μὲν οὖν λέγεται τοῦτον τὸν τρόπον ἐπίδειξιν ποιήσασθαι τῆς σοφίας.]

imagem: Tales, da Crónica de Nuremberga

Curso Livre de Grego Moderno (Módulo de Iniciação A.1.1)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Crónicas da Medicina Antiga

Mas em Cartago quem é que, além de um reduzido número, soube da cura de Inocêncio, antigo advogado no vicariato da Prefeitura onde nós estávamos e o vimos com os nossos olhos? De facto, quando chegámos do ultramar, eu e meu irmão Alípio, e ainda não éramos clérigos, mas já servíamos a Deus, como aquele era, bem como toda a sua família, muito religioso, acolheu-nos e ficámos então a habitar em casa dele. Andava a ser tratado pelos médicos de inúmeras e complicadas fístulas que ele tinha na parte posterior e inferior do corpo. Já lhe tinham feito uma incisão e aplicavam-lhe, com medicamentos, os outros recursos da sua arte. Mas durante essa incisão suportou prolongadas e acerbas dores.

Um dos numerosos abcessos tinha escapado aos médicos e estava tão escondido que eles não podiam chegar-lhe e abri-lo com o ferro como era preciso. Já estavam curadas todas as outras fístulas de que tratavam porque estavam à vista, só esta, sobre a qual em vão recaía todo o seu trabalho, persistia. Achando suspeitas estas delongas, e receando deveras que de novo o operassem (o que já lhe tinha predito um médico da sua família, que ele, irritado, expulsara de sua casa e voltara a receber contrariado, e a quem os outros, quando foi pela primeira vez operado, não tinham admitido nem sequer para ver como é que eles o faziam), não se conteve e disse: «Quereis-me cortar outra vez? Terei que ir para aquele que nem presente quisestes que estivesse?»

Riram-se do médico incompetente e com boas palavras e promessas atenuaram o medo do homem. Mas passavam-se dias e de nada servia tudo o que se fazia. Mas os médicos persistiam na sua promessa de que haviam de acabar com aquele abcesso não com o ferro mas com medicamentos. Chamaram também um outro médico já idoso e bastante louvado naquela arte, chamado Amónio (pois ainda era então vivo), que, examinando a zona doente, confirmou o mesmo que a diligência e a perícia dos outros tinham prognosticado. Animado pela sua autoridade, aquele, como se já estivesse curado, pôs-se a rir com faceta hilaridade do seu médico de família que lhe predissera uma nova incisão.

Que mais? Decorreram depois tantos dias passados em vão, e os médicos, cansados e confusos, acabam por confessar que de nenhum outro modo senão pelo ferro o podem salvar. Fica apavorado, empalidece perturbado por imenso terror, e, logo que volta a si e pode falar, mandou-os embora e que nunca mais lhe aparecessem; e, cansado das lágrimas e apertado pela necessidade, nada mais lhe ocorreu do que chamar um tal Alexandrino, que era então considerado como um admirável cirurgião para que este fizesse o que, irritado, não consentiu que pelos outros fosse feito. Mas, depois de ter vindo e tre visto nas cicatrizes o trabalho dos outros, como perito honrado, tratou de persuadi-lo a que fossem antes aqueles, que nele fizeram um tão bom trabalho como o que ele via e admirava, a terem o prazer de o curarem definitivamente — acrescentando que não poderia ser salvo se não fosse realmente operado, mas que muito repugnava aos seus hábitos tirar a glória de um tão belo trabalho, por pouco que houvesse ainda para fazer, a homens de quem admirava, ao ver as cicatrizes, o trabalho, a perícia e o cuidado consumados.

Voltaram eles a cair nas suas graças e decidiu-se que, na presença do Alexandrino, abririam com o ferro o abcesso que todos reconheciam incurável por outro meio. O caso foi protelado para o dia seguinte. Mas quando eles se foram embora, foi tão grande a dor que se levantou naquela casa por causa do total abatimento do senhor, que dificilmente reprimíamos um pranto que parecia o de um funeral. Todos os dias o visitavam santos varões: Saturnino de bem-aventurada memória, então bispo de Uzalis, o presbítero Guloso, os diáconos da Igreja de Cartago, e entre eles estava o único que ainda está nas realidades deste mundo, o actual bispo Aurélio, que por nós deve ser nomeado com o devido respeito e com quem, recordando as obras maravilhosas de Deus, tantas vezes falámos deste caso e verificámos que ele se recordava muito bem do que conversávamos.

Aos que, como era costume, o visitaram à tarde, pediu ele, com lágrimas que causavam dó, que, na manhã seguinte, fizessem o favor de virem assistir ao seu funeral, que não à sua dor. Tão grande era o medo que, devido às dores anteriores, o invadira, que se convenceu de que ia morrer às mãos dos médicos. Consolaram-no e exortaram-no a que confiassem em Deus e se entregasse com coragem à Sua vontade. Depois começámos a rezar, pusemo-nos de joelhos, como é costume, e inclinámo-nos até ao chão, e ele, como se alguém o tivesse empurrado, lançou-se por terra e começou a rezar. Com que maneiras, com que afecto, com que emoção, com que torrente de lágrimas, com que gemidos e com que soluços que sacudiam todos os seus membros e quase lhe tiravam a respiração — quem é que por palavras o poderá descrever? Não sei se os outros rezavam ou se a atenção se tinha desviado para este espectáculo. Eu é que, na verdade, não podia rezar; só disse rapidamente no meu coração: «Senhor, se não atendes a estas, quais são as preces dos teus que tu atendes?». De facto, parecia-me que já não podia restar-lhe senão expirar enquanto orava. Levantámo-nos e recebida a bênção dos bispos, retirámo-nos, pendindo-lhes ele que estivessem lá de manhã e exortando-o eles a que ficasse descansado.

Apontou o dia que se temia; como tinham prometido que lá estariam, lá estavam, de facto, os servos de Deus; entraram os médicos, preparou-se tudo o que aquela hora exigia, trazem-se os terríveis instrumentos de ferro ficando todos atónitos e suspenso. Os de maior autoridade exortam-no com palavras de estímulo e esforçam-se por levantar a sua falta de ânimo; põem no leito os seus membros ao alcance das mãos do cirurgião; desatam-se os nós das ligaduras; põe-se a descoberto a zona doente; o médico inspecciona e busca atentamente, armado com os seus instrumentos, o abcesso que deve cortar; prescruta com os olhos, apalpa com os dedos, emprega, por fim, todos os recursos — mas o que encontra é uma cicatriz bem consolidada. Não é com as minhas palavras que se poderá descrever a alegria, o louvor, a acção de graças a Deus misericordioso e omnipotente, que jorram da boca de todos com lágrimas de prazer: é mais fácil imaginá-lo do que dizê-lo.

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro XXII, Cap. VIII
Gulbenkian, Lisboa: 1995. (trad.: J. Dias Pereira).

imagem: fresco da Casa do Cirurgião, Pompeia

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Platão Político: De Aristóteles ao Século XX: A Hermenêutica de um Escândalo

O Grupo Archai: As Origens do Pensamento Ocidental e o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Brasília (PPG-FIL/UnB) promovem a III Escola Archai de Altos Estudos da CAPES organizada por Gabriele Cornelli. Ao longo deste mês e do próximo, Mario Vegetti, da Universidade de Pavia, Itália, falará sobre a recepção do pensamento político de Platão ao longo dos tempos, no que promete ser um ciclo de sessões de grande qualidade. Os vídeos das aulas serão disponibilizados online, podendo ser descarregados aqui. Eis o sumário do curso:

11 out: Platão político
18 out: Intérpretes e críticos de Aristóteles à Renascença
19 out: Às origens da Modernidades: Kant e Hegel
20 out: Liberais e socialistas na Europa do século XIX
25 out: De Wilamowitz ao Platão nazista
26 out: O Platão anglosaxão de Russell a Popper
01 nov: As defesas de Platão contra Popper: Platão apolítico?
03 nov: Platão e a utopia hoje

domingo, 17 de outubro de 2010

XIII

Ouves, amada, a alegre gritaria vinda da Via Flamínia?
São ceifeiros, regressam de novo a suas casas,
Longe daqui. Concluíram a colheita para o Romano,
Que não se baixa sequer para tecer uma coroa de flores para Ceres.
Já não se dedicam festas à grande Deusa
Que não dava bolotas como alimento, mas o trigo doirado.
Celebremos aqui em silêncio e alegria a nossa festa:
Dois seres que se amam muito, em vez do povo reunido.
Alguma vez ouviste falar daquela cerimónia mística
Que outrora acompanhava o vencedor de Elêusis até aqui?
Os Gregos criaram-na, e mesmo entre os muros de Roma
Só os Gregos chamavam sempre: «Venham à noite sagrada!»
E então fugia o profano, e à espera tremia o noviço
Que um hábito branco, símbolo de inocência, envolvia.
Assombrosos círculos de figuras estranhas
Confundiam o iniciado como se num sonho flutuasse, pois
No santuário serpenteavam cobras e moças passavam,
Coroadas de flores e espigas, trazendo nas mãos cofres fechados.
Com gestos ambíguos os sacerdotes sussuravam,
Impaciente e receoso o aprendiz ansiava por luz.
Só após muitas provas, voltando muitas vezes, ele soube
O que o círculo sagrado ocultava em estranhas imagens.
E qual era o segredo? Que também a grande Deméter
De bom grado se deitou um dia de costas
Quando cedeu ao nobre Iásion, o vigoroso rei dos Cretenses,
O doce segredo do seu corpo imortal.
Como se regozijou Creta, pois o leito nupcial da Deusa
Estava repleto de espigas e o campo pejado de trigo.
Mas o resto do mundo passava fome, pois no deleite
Do amor Ceres faltava ao seu belo ofício.
Cheio de espanto o iniciado ouviu a lenda,
Fez sinal à amada — Entendes tu agora, amor, o sinal?
Segue-me depressa até ao canavial no fundo da vinha,
O nosso prazer não traz perigo ao mundo.

Goethe, Erotica Romana
Cavalo de Ferro, Lisboa: 2005. (trad.: Manuel Malzbender)

[Hörest du, Liebchen, das muntre Geschrei den Flaminischen Weg her?
Schnitter sind es; sie ziehn wieder nach Hause zurück,
Weit hinweg. Sie haben des Römers Ernte vollendet,
Der für Ceres den Kranz selber zu flechten verschmäht.
Keine Feste sind mehr der großen Göttin gewidmet,
Die, statt Eicheln, zur Kost goldenen Weizen verlieh.
Laß uns beide das Fest im stillen freudig begehen!
Sind zwei Liebende doch sich ein versammeltes Volk.
Hast du wohl je gehört von jener mystischen Feier,
Die von Eleusis hieher frühe dem Sieger gefolgt?
Griechen stifteten sie, und immer riefen nur Griechen,
Selbst in den Mauern Roms: »Kommt zur geheiligten Nacht!«
Fern entwich der Profane; da bebte der wartende Neuling,
Den ein weißes Gewand, Zeichen der Reinheit, umgab.
Wunderlich irrte darauf der Eingeführte durch Kreise
Seltner Gestalten; im Traum schien er zu wallen: denn hier
Wanden sich Schlangen am Boden umher, verschlossene Kästchen,
Reich mit Ähren umkränzt, trugen hier Mädchen vorbei,
Vielbedeutend gebärdeten sich die Priester und summten;
Ungeduldig und bang harrte der Lehrling auf Licht.
Erst nach mancherlei Proben und Prüfungen ward ihm enthüllt
Was der geheiligte Kreis seltsam in Bildern verbarg.
Und was war das Geheimnis! als daß; Demeter, die große,
Sich gefällig einmal auch einem Helden bequemt,
Als sie Jasion einst, dem rüstigen König der Kreter,
Ihres unsterblichen Leibs holdes Verborgne gegönnt.
Da war Kreta beglückt! das Hochzeitbette der Göttin
Schwoll von Ähren, und reich drückte den Acker die Saat.
Aber die übrige Welt verschmachtete; denn es versäumte
Aber der Liebe Genuß Ceres den schönen Beruf.
Voll Erstaunen vernahm der Eingeweihte das Märchen,
Winkte der Liebsten - Verstehst du nun, Geliebte, den Wink?
Jene buschige Myrte beschattet ein heiliges Plätzchen!
Unsre Zufriedenheit bringt keine Gefährde der Welt.]

imagem: Temple of Ceres at Eleusis, de Joseph Gandy (1818)

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Não sei se já «postáramos» isto

Pré-Socráticos #7: Os Sofistas

Sétima e última sessão do ciclo Tertúlias Pré-Socráticas, promovido pela associação Origem da Comédia. Maria Teresa Schiappa fala-nos dos sofistas, o nome genericamente atribuído a uma série de filósofos que, no século V a.C., revolucionaram o panorama intelectual de Atenas. Homens viajados e de grande cultura, procederam a uma intrincada reforma do sistema de cultura-educação grego fundado em moldes de pensamento político e linguístico, abandonando assim as especulações cosmológicas dos outros pré-socráticos. Protágoras, um dos mais famoso dentre eles, é o autor da célebre afirmação: «O Humano é a medida de todas as coisas», frase que ilustra bem o seu antropocentrismo, mas também o relativismo que marcou esta geração, bem mais céptica que as anteriores. Sessão decorrida no dia 5 de Maio de 2010, no foyer do Teatro Académico Gil Vicente, Coimbra.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Quidquid Latine, Altum Videtur

But how shall I account, illustrious fay,
For thine imperial absence? Pho, I can
Say you are very sick, and bar the way
To your so loving courtiers for one day.
If either of their two archbishops' graces
Should talk of extreme unction, I shall say
You do not like cold pig with Latin phrases,
Which never should be used but in alarming cases.

Keats, The Cap and the Bells or, The Jealousies, LX

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Conselho aos Poetas


Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero. (Ricardo Reis)

Talvez a Ilíada não seja um livro, mas a própria ideia de literatura, e todos os outros livros reescrevam incessantemente alguma estrofe ou algum verso seu. (Manuel António Pina, na contracapa da edição da Ilíada, da Cotovia, 2005).

Martha Nussbaum on Aristotle, ou, o Youtube é só para gatos


Não esquecer ver as outras variegadas playlists desta conta.

O Menino Agostinho na Escola (Traumas de Infância), ou Zaratustra Contra A Consciência Infeliz

Raríssimos são os que nenhumas penas sofrem nesta vida mas apenas depois dela. Todavia, nós próprios conhecemos e ouvimos falar que tem havido alguns que nunca sentiram nem sequer a mais leve ponta de febre e levaram uma vida tranquila até à decrépita velhice. Contudo, a própria vida dos mortais é toda ela uma pena, porque toda ela é tentação, como o proclamam as Sagradas Escrituras onde está escrito: «Não é certo que a vida do Homem sobre a terra é uma tentação?». Efectivamente, não é pequena pena a própria ignorância ou inexperiência que com razão se procura evitar ao ponto de se obrigarem as crianças, com castigos prenhes de dor, a aprenderem as artes e as letras — e o próprio facto de aprenderem, a que são obrigados com castigos, é-lhes de tal forma penoso que por vezes preferem suportar esses castigos com que os obrigam a aprender, a terem de aprender. Quem é que não fica horrorizado e prefere morrer se lhe for proposto ou a morte ou repetir de novo a infância? O próprio facto de esta começar a tecer a teia da vida, não com risos mas com choros, anuncia de certo modo, sem saber, os males em que acaba de entrar. Ao que se diz, só Zoroastro é que se riu ao nascer.

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro XXI, Cap. XIV
Gulbenkian, Lisboa: 1995. (trad.: J. Dias Pereira).

[Rarissimi sunt autem qui nullas in hac uita, sed tantum post eam poenas luunt. Fuisse tamen aliquos, qui usque ad decrepitam senectutem ne leuissimam quidem febriculam senserint quietamque duxerint uitam, et ipsi nouimus et audiuimus; quamquam uita ipsa mortalium tota poena sit, quia tota temptatio est, sicut sacrae litterae personant, ubi scriptum est: Numquid non temptatio est uita humana super terram? Non enim parua poena est ipsa insipientia uel inperitia, quae usque adeo fugienda merito iudicatur, ut per poenas doloribus plenas pueri cogantur quaeque artificia uel litteras discere; ipsumque discere, ad quod poenis adiguntur, tam poenale est eis, ut nonnumquam ipsas poenas, per quas compelluntur discere, malint ferre quam discere. Quis autem non exhorreat et mori eligat, si ei proponatur aut mors perpetienda aut rursus infantia? Quae quidem quod non a risu, sed a fletu orditur hanc lucem, quid malorum ingressa sit nesciens prophetat quodam modo. Solum, quando natus est, ferunt risisse Zoroastrem]

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Alexandria Ad Aegyptum

ALEXANDRIA AD AEGYPTUM
A experiência do multiculturalismo na Antiguidade
21 e 22 de Outubro 2010
Anfiteatro nobre (FLUP).
Entrada gratuita.

21/10
09:00 — Abertura

09:30 — No Encalço da Fundação de Alexandria, de Maria de Fátima Sousa e Silva (UC)
10:00 — Os Ptolomeus: uma dinastia mal-amada e mal conhecia, de José das Candeias Sales (Univ. Aberta)
10:30 — The Alexandria Project, de Omnia Mounir Fathallah (Bibliotheca Alexandrina)

11:00 — Intervalo

11:30 — A Obra Historiográfica de Maneton, de Luís Manuel de Araújo (UL)
12:00 — Alexandria em Festa: Mobilidade, Lazer e Arte na Época Helenística, de Luísa de Nazaré Ferreira (UC)

12:30 — Almoço

14:30 — Identidade e Cosmopolitismo: o politeuma judaico de Alexandria, de Delfim Leão (UC)
15:00 — Hermes Trimegisto e as rotas cruzadas da filosofia oculta, da ciência e da linguagem, de Filomena Vasconcelos (UP)
15:30 — A Alexandria de Fílon em Fílon de Alexandria, de Manuel Alexandre Júnior

16:00 — Intervalo

16:30 — Os Calendários do Antigo Egipto, de Telo Canhão (UL)
17:00 — A Astronomia Alexandrina, de Henrique Leitão (UL)
17:30 — A Matemática de Alexandria: a nossa matemática, de Jorge Nuno Silva (UL)

18:00 — Inauguração da exposição de fotografia A Cor e a Luz: detalhes de uma fascinação egípcia, coordenada por Maria do Carmo Serén (Biblioteca Central)

22/10
09:30 — Os Septuaginta e a helenização da tradição judaica, de José Augusto Ramos (UL)
10:00 — A origem alexandrina do Evangelho (gnóstico) segundo São João, de Ricardo Tavares (Univ. Católica)
10:30 — Hipácia e as particularidades do cristianismo egípcio: causas para a incomunicabilidade, de Paula Barata Dias (UC)

11:00 — Intervalo

11:30 — Cosmopolitan trands in the arts of Ptolemaic Alexandria, de Mona Haggan (Univ. Alexandria)
12:30 — O retrato e o realismo da escultura no período helenístico, de José Ribeiro Ferreira (UC)

12:30 — Almoço

14:30 — Apolónio de Rodes e o universo dos Argonautica, de Maria do Céu Fialho (UC)
15:00 — Calímaco e os novos caminhos do mito, de Marta Várzeas (UP)
15:30 — Tradição e identidade em Lícofron, de Jorge Deserto (UP)

16:00 — Intervalo

16:30 — Alexandria na literatura latina clássica, de Maria Cristina Pimental (UL)
17:00 — O Culto de Ísis em Roma, de Cláudia Teixeira (Univ. Évora)
17:30 — Entre o Museu e a Biblioteca de Alexandria, de Maria Helena da Rocha Pereira (UC)

18:00 — Encerramento

18:30 — Joclécio Azevedo: performance «Alexandria: Fragmentos» (Biblioteca Central)

imagem: fotograma de Ágora, de Amenábar (2010)
reconstituição da ágora de Alexandria em 391 d.C.

Vantagens da Educação Clássica

Quem na infância leu Horácio no original, ainda que penosamente, poderá, adulto, escrever versos sem metro, ou sequer ritmo regular, mas qualquer equilíbrio íntimo haverá nesses versos que não conseguiria dar-lhes quem não teve esse passado, ainda que formalmente esquecido.

A educação clássica na infância equivale à boa-educação, como vulgarmente se diz, recebida nessa mesma infância. Quem foi bem-educado na infância pode esquecer as boas-maneiras, pode esquecer a etiqueta: o que não esquece é a civilidade, que é o fundamento de ambas.

Quem teve uma educação clássica pode vir a esquecer o latim ou o grego, seus principais veículos, pode perder a firmeza de um e a perspicuidade (harmonia) do outro; contra certos vícios de dicção, contra certas falhas de gosto, terá ficado vacinado. E o que são, na prosa ou no verso, a dicção e o gosto, senão a civilidade da literatura, de que a perspicuidade é só as boas-maneiras e a regularidade só a etiqueta?

Tudo isto, é claro, são generalidades. Há quem tenha um natural bom-gosto e um jeito elegante de dicção, sem que tenha tido uma educação clássica. Há, mas são casos raros. Há quem, tendo tido uma educação clássica cometa faltas de gosto ou, mais raramente, de dicção. Há, mas são excepções. Mas do mesmo modo há indivíduos naturalmente civis e cortezes, sem que beneficiassem na infância da chamada boa-educação.


imagem: Horácio e Lídia, de John Collier

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Sansão, Escuta!

Iron should spare a wise man's hair, because it is impious to apply it to the place that contains all the sources of his perception, all his utterances, from which all his prayers proceed, as does the discourse that conveys his wisdom. Empedocles actually tied a ribbon of the purest purple around his hair, and strutted around the streets of Greece, composing hymns to the effect that he would pass from mortal to god.

Filóstrato, Apolónio de Tiana 8.7.18
Harvard University Press, Cambridge MA: 2005. (trad.: Christopher Jones).

imagem: Sansão e Dalila, de Matthias Stom
1630s, @ Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma.

A Filosofia de Epicteto e Marco Aurélio

O Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto informa que de 6 a 22 de Outubro de 2010 estarão abertas as inscrições para o Seminário Aberto, intitulado:

A FILOSOFIA DE EPICTETO E MARCO AURÉLIO
Docente: Prof. Doutor Álvaro dos Penedos
Início: 25 de Outubro a 18 de Dezembro de 2010
Segundas-feiras: 19,30h-20,30h. Sala a indicar
Máximo de 30 participantes. Seminário gratuito.


Tópicos programáticos:
1. O contexto histórico;
2. O estoicismo em Roma;
3. Análise de O Manual de Epicteto;
4. Análise de Os Pensamentos de Marco Aurélio

Informações e inscrições:
e-mail: df@letras.up.pt
Web: www.letras.up.pt/df

domingo, 10 de outubro de 2010

Bernardo Soares Sobre A Doutrina Não-Escrita de Platão

Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.

retirado daqui.
ler mais sobre a doutrina não-escrita de Platão aqui.
imagem: fotograma do Filme do Desassossego, de João Botelho (2010).

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Alcméon o “moderno” ou o perigo de ler fragmentos

“É que Alcméon diz que os homens se destroem pelo facto de não conseguirem unir o princípio ao fim”. (DK 24B2[1] = Pseudo-Aristóteles, Problemas [Físicos] XVII 3, 916a33-35)[2]
Quem abrir a famosa colectânea Die Fragmente der Vorsokratiker verá esta frase atribuída a Alcméon de Crotona, um suposto pitagórico dos finais do séc. VI a.C. e considerado pioneiro de postulados e práticas tremendamente admiráveis: recorreu à dissecação como técnica de observação empírica (DK 24A10); defendeu que o cérebro é o órgão responsável pelo pensamento e percepção (DK 24A5); demonstrou racionalmente a imortalidade da alma (DK 24A1, 12). Pasme-se!
Neste fragmento em particular, a revelação não é menos tremenda, contanto que se interprete “destruir” metaforicamente, como aconselha o autor do tratado em que aparece a citação:
"(...) um dito sagaz, se entendermos que ele o proferiu em sentido figurado e não o quisermos tomar à letra". (Pseudo-Aristóteles, Problemas [Físicos] XVII 3, 916a35-36)[3]
Neste sentido, o Homem (se me é permitido universalizar) vive “dilacerado” porque se encontra entre dois extremos que não consegue coligar, um originário e o outro terminal; toma consciência da sua finitude. Conceber um enunciado deste tipo depois da “flecha do tempo” teológico judaico-cristão, que situa o ser humano singular entre um Génesis e um Apocalipse (entre um α e um ω), ou pela versão secularizada do tempo moderno movido pela noção de progresso, seria constatar o óbvio. Todavia, concebê-lo no quadro temporal antigo – circular e eterno, sem princípio nem fim (análogo aos ciclos da natureza) – é no mínimo surpreendente. Esboçar um método experimental ou alicerçar um dos pilares mais fundamentais do platonismo são feitos que, apesar de espantosos, podem ser enquadrados numa macro-estrutura civilizacional; mas antecipar em séculos um modelo temporal cosmológico e antropológico sem qualquer tipo de mudança de orientação cultural, intelectual ou religiosa que o motivasse é algo completamente inexplicável. No entanto, o mistério esclarece-se simplesmente pela leitura do contexto em que o fragmento aparece referido:
“Em que sentido se deve tomar “o anterior” e “o posterior”? Será que é como os [que viveram] em Tróia em relação a nós, os [povos] que estão antes deles em relação a eles, e assim sucessivamente? Ou então, se há um princípio, um meio e um fim do universo, e quando alguém que envelhece chega ao limite para tornar a regressar ao princípio, e se as coisas mais próximas do fim são “anteriores”, o que nos impede de estar mais perto do princípio? Se assim for, nós somos anteriores. Tal como na órbita do céu e de cada um dos astros há um círculo, o que impede que se verifique a mesma coisa em relação à geração e à destruição dos corpos corruptíveis, de tal forma que tornam a nascer e a corromper-se? De igual modo se diz que as coisas humanos são um círculo. É disparatado supor os que nascem sejam sempre os mesmos em número, mas aceitaremos melhor que sejam da mesma espécie. Por conseguinte, nós próprios seríamos “anteriores” e devíamos estabelecer que a ordem dos eventos é de tal forma que regressa novamente ao princípio, produz continuidade e age sempre do mesmo modo. É que Alcméon diz que os homens se destroem pelo facto de não conseguirem unir o princípio ao fim – um dito sagaz, se entendermos que ele o proferiu em sentido figurado e não o quisermos tomar à letra. Se [tudo] é um círculo, como não há nem princípio nem fim do círculo, nem eles seriam “anteriores” por estarem mais perto do princípio, nem nós seríamos [“anteriores”] a eles nem eles a nós". (Pseudo-Aristóteles, Problemas [Físicos] XVII 3, 916a18-39)[4]
Tomada na linha de argumentação do Pseudo-Aristóteles, a frase de Alcméon parece significar justamente o oposto do que sugeria a leitura inicial: cada um dos homens morre (literalmente) do ponto de vista singular porque só lhe é permitido acompanhar a circularidade cósmica enquanto espécie. Ao contrário do que forçava a interpretação do fragmento isolado, o “sentido figurado” não diz respeito a “destroem”, mas sim a “princípio e fim”: como um círculo não tem princípio nem fim, essas designações só podem ser tomadas metaforicamente para designar os dois limites de um evento isolado, como por exemplo a existência de um homem em concreto.


[1] A sigla “DK” (Diels-Kranz) designa o volume Die Fragmente der Vorsokratiker editado por Hermann Diels e, posteriormente, melhorado por Walther Kranz; o primeiro número designa o capítulo dedicado a cada autor (24 no caso de Alcméon); a letra refere-se ao tipo de fragmento (“A” designa os chamados testimonia); o último número indica o fragmento e a referência à direita do sinal “=” diz respeito à fonte de que foi colhido.
[2] τοὺς γὰρ ἀνθρώπους φησὶν Ἀλκμαίων διὰ τοῦτο ἀπόλλυσθαι, ὅτι οὐ δύνανται τὴν ἀρχὴν τῷ τέλει προσάψαι.
[3] κομψῶς εἰρηκώς, εἴ τις ὡς τύπῳ φράζοντος αὐτοῦ ἀποδέχοιτο καὶ μὴ διακριβοῦν ἐθέλοι τὸ λεχθέν.
[4] Πῶς τὸ πρότερον καὶ τὸ ὕστερον δεῖ λαβεῖν; πότερον ὥσπερ ἡμῶν οἱ ἐπὶ Τροίας καὶ ἐκείνων οἱ πρὸ αὐτῶν καὶ ἀεὶ οἱ ἐπάνω πρότεροί εἰσιν; ἢ εἴπερ ἀρχή τίς ἐστι καὶ μέσον καὶ τέλος τοῦ παντός, καὶ ὅταν γηράσκων τις ἐπὶ τὸ πέρας ἔλθῃ καὶ πάλιν ἐπαναστρέψῃ ἐπὶ τὴν ἀρχήν, τὰ δὲ ἐγγυτέρω τῆς ἀρχῆς πρότερα, τί κωλύει ἡμᾶς ἐν τῷ πρὸς τὴν ἀρχὴν εἶναι μᾶλλον; εἰ δὲ τοῦτο, κἂν πρότεροι εἴημεν. ὥσπερ ἐπὶ τοῦ οὐρανοῦ καὶ ἑκάστου τῶν ἄστρων φορᾷ κύκλος τίς ἐστι, τί κωλύει καὶ τὴν γένεσιν καὶ τὴν ἀπώλειαν τῶν φθαρτῶν τοιαύτην εἶναι, ὥστε πάλιν ταῦτα γίνεσθαι καὶ φθείρεσθαι; καθάπερ καὶ φασὶ κύκλον εἶναι τὰ ἀνθρώπινα. τὸ μὲν δὴ τῷ ἀριθμῷ τοὺς αὐτοὺς ἀξιοῦν εἶναι ἀεὶ τοὺς γινομένους εὔηθες, τὸ δὲ τῷ εἴδει μᾶλλον ἄν τις ἀποδέξαιτο· ὥστε κἂν αὐτοὶ πρότεροι εἴημεν, καὶ θείη ἄν τις τὴν τοῦ εἱρμοῦ τάξιν τοιαύτην εἶναι ὡς πάλιν ἐπανακάμπτειν ἐπὶ τὴν ἀρχὴν καὶ συνεχὲς ποιεῖν καὶ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ ἔχειν. τοὺς γὰρ ἀνθρώπους φησὶν Ἀλκμαίων διὰ τοῦτο ἀπόλλυσθαι, ὅτι οὐ δύνανται τὴν ἀρχὴν τῷ τέλει προσάψαι, κομψῶς εἰρηκώς, εἴ τις ὡς τύπῳ φράζοντος αὐτοῦ ἀποδέχοιτο καὶ μὴ διακριβοῦν ἐθέλοι τὸ λεχθέν. εἰ δὴ κύκλος ἐστί, τοῦ δὲ κύκλου μήτε ἀρχὴ μήτε πέρας, οὐδ' ἂν πρότεροι εἶεν τῷ ἐγγυτέρω τῆς ἀρχῆς εἶναι, οὔθ' ἡμεῖς ἐκείνων οὔτ' ἐκεῖνοι ἡμῶν.

Pré-Socráticos #6: Pitágoras & Os Pitagóricos

Sexta sessão do ciclo Tertúlias Pré-Socráticas, promovido pela associação Origem da Comédia. José Pedro Serra fala-nos de Pitágoras, um nome de todos familiar, pelo teorema que lhe é atribuído. Os números desempenham um papel importante em toda a sua filosofia, em que insiste na ordem e proporção do cosmos, realidade que exprimia com o conceito, bem conhecido, de música das esferas. É também um dos principais introdutores no Ocidente da ideia da reencarnação e do vegetarianismo. Contudo, a sua figura permanece envolta em mistério e lendas, à falta de informações fidedignas. O certo é que as suas doutrinas tiveram um impacto formidável no curso da filosofia grega, tendo influenciado de forma decisiva essa figura maior do pensamento ocidental: Platão. Sessão decorrida no dia 28 de Abril de 2010, no foyer do Teatro Académico Gil Vicente, Coimbra.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Agostinho, O Pavão & A Descoberta do Íman

Quem, pois, senão Deus, criador de todas as coisas, deu à carne morta de pavão a propriedade de não apodrecer? Isto pareceu-me incrível quando o ouvi. Mas um dia aconteceu darem-nos carne cozinhada desta ave em Cartago. Ordenámos que guardassem um pedaço bastante grande do peito. Após um número de dias bastante longo para toda a outra carne cozinhada apodrecer, o pedaço que trouxeram e nos ofereceram não incomodou mesmo nada o nosso olfacto. Mais ainda: conservado durante mais de trinta dias, achou-se no mesmo estado, o mesmo acontecendo decorrido um ano; apenas a massa se tornou um pouco mais seca e contraída.

[...] Sabemos que a pedra da Magnésia (magnes lapis = íman) atrai admiravelmente o ferro. Quando o vi pela primeira vez fiquei deveras estupefacto. Realmente eu via um anel de ferro atraído pela pedra e ficar suspenso; depois, como se tivesse transmitido e comunicasse a sua força ao ferro que tinha atraído, esse anel, aproximado de outro, suspende este e, assim como aquele primeiro se unia à pedra, assim este segundo se unia ao primeiro anel; juntou-se da mesma maneira um terceiro; depois juntou-se-lhe um quarto; e já estava formada uma como que cadeia de anéis não entrelaçados por dentro mas encostados por fora. Quem é que não ficará pasmado perante esta força da pedra que não só lhe era intrínseca mas também passava por tantos anéis suspensos e os unia por laços invisíveis?

Ora muito mais maravilhoso ainda foi o que aprendi, acerca desta pedra, do meu irmão e colega no episcopado Severo de Milevi. Contou-me ter ele próprio visto de que modo Batanário, outrora conde de África, quando o bispo tomava a sua refeição em casa dele, pegara nessa pedra e a pusera debaixo de um prato de prata. Em cima do prato pôs ferro. Depois, conforme deslocava a mão que, por debaixo, segurava a pedra, assim também se deslocava o ferro que estava por cima; mas o prato, que estava no meio, não experimentava qualquer efeito e, enquanto por debaixo da pedra, nos seus rápidos avanços e recuous era movida pelo homem, o ferro, em cima, era arrastado pela pedra.

Contei o que eu próprio vi; contei o que ouvi daquele em quem acredito como se eu próprio tivesse visto. Vou agora contar o que também li acerca desta pedra da Magnésia. Quando perto dela se põe um diamante, já ela não atrai o ferro e, se o tiver atraído, deixa-o cair logo que se lhe aproxima o diamante. É a Índia que nos envia estas pedras; mas se nós nos deixamos de admirar por já as conhecermos, quanto mais não hão-de deixar de se admirar aqueles de quem elas nos vêm, pois as adquirem com facilidade.

Santo Agostinho, Cidade de Deus, Livro XXI, Cap. IV
Gulbenkian, Lisboa: 1995. (trad.: J. Dias Pereira).

[Quis enim nisi Deus creator omnium dedit carni pauonis mortui ne putesceret? Quod cum auditu incredibile uideretur, euenit ut apud Carthaginem nobis cocta apponeretur haec auis, de cuius pectore pulparum, quantum uisum est, decerptum seruari iussimus; quod post dierum tantum spatium, quanto alia caro quaecumque cocta putesceret, prolatum atque oblatum nihil nostrum offendit olfactum. Itemque repositum post dies amplius quam triginta idem quod erat inuentum est, idemque post annum, nisi quod aliquantum corpulentiae siccioris et contractioris fuit. [...] Magnetem lapidem nouimus mirabilem ferri esse raptorem; quod cum primum uidi, uehementer inhorrui. Quippe cernebam a lapide ferreum anulum raptum atque suspensum; deinde tamquam ferro, quod rapuerat, uim dedisset suam communemque fecisset, idem anulus alteri admotus est eundemque suspendit, atque ut ille prior lapidi, sic alter anulus priori anulo cohaerebat; accessit eodem modo tertius, accessit et quartus; iamque sibi per mutua circulis nexis non implicatorum intrinsecus, sed extrinsecus adhaerentium quasi catena pependerat anulorum. Quis istam uirtutem lapidis non stuperet, quae illi non solum inerat, uerum etiam per tot suspensa transibat et inuisibilibus ea uinculis subligabat? Sed multo est mirabilius, quod a fratre et coepiscopo meo Seuero Mileuitano de isto lapide comperi. Se ipsum namque uidisse narrauit, quem ad modum Bathanarius quondam comes Africae, cum apud eum conuiuaretur episcopus, eundem protulerit lapidem et tenuerit sub argento ferrumque super argentum posuerit; deinde sicut subter mouebat manum, qua lapidem tenebat, ita ferrum desuper mouebatur, atque argento medio nihilque patiente concitatissimo cursu ac recursu infra lapis ab homine, supra ferrum rapiebatur a lapide. Dixi quod ipse conspexi, dixi quod ab illo audiui, cui tamquam ipse uiderim credidi. Quid etiam de isto magnete legerim dicam. Quando iuxta eum ponitur adamans, non rapit ferrum, et si iam rapuerat, ut ei propinquauerit, mox remittit. India mittit hos lapides; sed si eos nos cognitos iam desistimus admirari, quanto magis illi, a quibus ueniunt, si eos facillimos habent]

quarta-feira, 6 de outubro de 2010